Quando, em março, as pessoas começaram a morrer em
consequência do vírus Ebola na África Ocidental, Martha Anker, estatística
encarregada do monitoramento e resposta a doenças contagiosas na Organização
Mundial da Saúde (OMS), passou a acompanhar as notícias para ver quem,
primariamente, seria infectado pelo terrível vírus. Sentada em sua casa em
Massachusetts, ela teve um pressentimento: de que o Ebola, como ocorreu no
passado, faria mais vítimas entre as mulheres.
Martha Anker estava certa.
Em 14 de agosto, notícia no Washington Post dizia que na
Guiné, Libéria e Serra Leoa, em conjunto, entre os mortos pelo vírus 55% a 60%
eram mulheres. Na Libéria, o governo informou que 75% das vítimas eram
mulheres. “Fiquei muito triste quando li a notícia”, disse ela. “Lamento muito
estar com a razão.”
Em 2007, Martha escreveu num relatório da OMS que “as
diferenças em termos de exposição entre homens e mulheres são importantes
fatores na transmissão da EHF (sigla em inglês da febre hemorrágica Ebola). Por
esse motivo, é importante compreender o papel e responsabilidade do gênero na
exposição à doença em determinada área”.
Essa recomendação claramente não foi seguida na África
Ocidental quando começou a atual epidemia. O Ebola se propaga pelo contato com
o sangue e outros fluídos do corpo; e na Libéria, como nos países vizinhos, as
mulheres normalmente são as principais cuidadoras de doentes. Ainda são na
atual epidemia – permanecendo em casa e sendo infectadas pelos filhos ou marido
doentes em vez de procurarem médicos e enfermeiras para assistirem os
familiares. Raramente é o contrário. “Se um homem está doente, a mulher cuidará
dele, dará banho nele, mas o homem não faz isso”, diz Marpue Spear, diretora
executiva da ONG Women’s Secretariat of Liberia (Wongosol). “Tradicionalmente,
as mulheres cuidam dos homens e não os homens das mulheres.”
Serão necessárias muitas mortes – mais de 1.200 no momento
em que escrevo este artigo – para entender como a atenção à dinâmica do gênero
pode ajudar a salvar vidas (neste caso, entre outras coisas, redigindo
mensagens direcionadas para as mulheres sobre a importância de adotarem medidas
de proteção em casa ou permitir que os familiares sejam tratados por
profissionais experientes). Na verdade, não seria necessário ser uma cassandra
como Martha Anker – no caso do Ebola e outras doenças.
Dados mostram que muitas doenças contagiosas afetam mais um
gênero que outro. Às vezes são os homens, como no caso da dengue. Às vezes são
as mulheres, como no caso do E. coli, da aids (mais da metade das pessoas com o
vírus são mulheres) e o Ebola em algumas epidemias anteriores. Outras vezes são
mulheres grávidas e mães, como o vírus H1N1 (uma epidemia na Austrália vem
atingindo 25% mais mulheres que homens).
Mas quando as mulheres são as principais vítimas de uma
epidemia poucas pessoas admitem o fato, perguntam a razão ou reagem como seria
necessário. Na verdade, os especialistas afirmam que muito pouco tem sido feito
para pôr em prática o pouco que sabemos sobre diferenças de gênero e doenças infecciosas
– de modo, por exemplo, a determinar antes de epidemias como o papel do gênero
pode ajudar no desenvolvimento de uma estratégia de prevenção ou contenção da
doença. Não só isso, mas também poucas pesquisas vêm sendo realizadas no
sentido de entendermos a que ponto as doenças infeciosas afetam diferentemente
os sexos num nível biológico. É como o Dia da Marmota cada vez que ocorre um
surto de uma doença e pessoas morrem em consequência dela. “Não conseguimos
passar do estágio da ‘observação’”, disse a professora Sabra Klein da Johns
Hopkins University. Os agentes de saúde pública geralmente reúnem dados sobre
idade e sexo durante uma crise, “mas ninguém vai a lugar nenhum só com isso”.
Sabra Klein, que estuda biologia e imunologia, explica que
“ir a algum lugar” seria avaliar conscientemente o que ocorre numa epidemia ou
numa crise sanitária através da lente do gênero. Também significaria tratar de
problemas sistêmicos, como o acesso desigual das mulheres a tratamentos de
saúde adequados ou a recursos financeiros que seriam necessários para esses
tratamentos. Em resumo, confrontar disparidades fundamentais e perigosas.
Examinar quem morre num surto epidêmico “mostra quem tem
poder e quem não tem”, disse a professora de epidemiologia da Universidade
Colúmbia Wafaa El-Sadr. “De certa maneira, é um espelho em que a sociedade se
olha. E mostra como as pessoas tratam umas às outras.”
Como em muitas áreas, o financiamento, a pesquisa e as
ideias de saúde pública são orientados para os homens brancos. Claudia
García-Moreno, especialista em assuntos ligados a gênero, direitos de
reprodução, saúde sexual e adolescência na OMS em Genebra, diz que, quando
estudou medicina, “tudo – dosagens de remédios, situações hipotéticas de saúde
pública – visavam a um homem branco pesando 70 quilos”.
Segundo ela, embora isso tenha mudado, “não foi tanto como
seria de esperar”.
Claudia destaca a persistente falta de atenção aos
“componentes biológicos” da doença. Com frequência existem diferenças básicas
na maneira como homens e mulheres reagem à infecção, diz Sandra Klein, e essas
diferenças podem – e devem – afetar a resposta médica no curto e longo prazo.
No caso da gripe, por exemplo, diz a médica, “a inflamação causada pela
infecção é sempre maior nas mulheres que nos homens”.
Do mesmo modo, Martha Anker observou no relatório de 2011
que “um erro frequente é subestimar a relativa importância de sintomas que
podem se verificar num sexo apenas, como o sangramento vaginal no caso da
dengue”.
“Você tira informações importantes no caso do Ebola”,
acrescenta Sandra Klein. “Entretanto, já com o financiamento da pesquisa do
vírus chegando, não está nem mesmo sendo considerado o papel que o sexo pode
desempenhar.”
Para comprovar essa rejeição da importância do gênero em
matéria de saúde pública, Klein referiu-se a uma nota anônima incluída na
análise de uma solicitação de bolsa feita por ela: “Gostaria que você parasse
com toda essa argumentação sobre sexo para se concentrar no aspecto científico”.
“Atuo nesse campo há 20 anos e isso (diferença biológica) não tem importância”,
dizia outra nota.
Durante toda sua carreira Martha Anker tem enfrentado noções
incorretas similares, com frequência baseadas em questões sociais se opondo às
biológicas.
“A crença geral é de que, quando doenças infecciosas atingem
homens e mulheres numa epidemia, o melhor é concentrar a atenção da saúde
pública no controle e tratamento e deixar para outros a solução de problemas
sociais que existem na sociedade, como desigualdades de gênero, depois de
passar a epidemia”, escreveu ela no seu relatório de 2011. Mas, solucionar
esses “problemas” pode ser crucial para compreender e conter a propagação da
epidemia.
É o caso da enfermagem, exercida principalmente por mulheres
que com frequência estão na linha de frente da luta contra as doenças
infeciosas. Entretanto, quase sempre são vistas como pouco importantes do ponto
de vista social e de gênero para serem ouvidas. “A pesquisa tem mostrado que as
relações entre médico e enfermeiro normalmente são precárias nos hospitais, o
que é uma ameaça potencial para a segurança do paciente – incluindo o risco de
infecções – e têm um impacto negativo na satisfação e carreira dos
enfermeiros”, assinalou relatório da OMS de 2011. Além disto, após o surto da
sars em 2013, estudos canadenses concluíram que “a falta de poder e influência
dos enfermeiros estava ligada às deficiências no controle da infecção”.
Analisando a questão do gênero de modo mais amplo num surto
anterior de Ebola, um relatório não científico indicava que os homens dominaram
as reuniões de informação sobre a doença, não obstante o fato de que já era
sabido que as mulheres eram as principais encarregadas de prestar assistência
aos doentes.
Durante surtos da gripe aviária, a tendência das autoridades
de governo era no sentido de tratar o assunto com homens porque a ideia é que
eram proprietários agrícolas, embora na verdade fossem as mulheres que com mais
frequência cuidavam dos animais. E alguns programas de controle da dengue no
Sudeste Asiático nos anos 1990, “enfrentaram resistência”, segundo um
relatório, porque agentes de saúde “questionaram a capacidade das mulheres de
manter o lar livre de doenças”.
Esses problemas certamente são arraigados. Mas em cada novo
surto epidêmico ou propagação de uma doença infecciosa há chances de fazer as
coisas de maneira diferente. “Sejam epidemias crônicas ou aguda, elas tendem a
mostrar as divisões e vulnerabilidades existentes”, disse Wafaa El-Sadr.
“Talvez no caso do Ebola, as deficiências do sistema de saúde acabem passando
para o primeiro plano, como também o sofrimento das pessoas privadas de
qualquer direito.”
“Talvez as lições aprendidas possam ajudar a evitar a
próxima epidemia”, acrescentou Wafaa.
Com tantas pessoas morrendo na África Ocidental, essa é uma
oportunidade para lutarmos contra a corrente e tentar incorporar a visão de
gênero nas respostas médicas e sociais. A hora de fazermos isso é agora – como
foi nas últimas crises.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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