Não há números exatos sobre quantas crianças e adolescentes
são vítimas de exploração sexual no Brasil. Segundo estimativa da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), 100 mil menores de idade, principalmente
meninas, são exploradas em mais de 900 municípios do país, quase metade deles
no Nordeste. Embora o problema seja de difícil detecção, quem já o sofreu na
pele garante: o trauma é real, profundo, e dura para sempre.
O G1 ouviu o relato de mulheres de Fortaleza e Recife que,
em determinados momentos de sua infância, adolescência e até na idade adulta,
sofreram algum tipo de violência sexual. As histórias têm começos distintos,
mas o fim é parecido: ele ainda não chegou, mas segue carregado de medo, choro
e vergonha. A maioria até hoje mantém esse passado escondido das próprias
famílias.
Por isso, os nomes marcados com asteriscos foram trocados
para preservar as identidades dessas mulheres.
Violência durante a vida inteira
Dos 32 anos de Maria do Socorro*, 13 foram de agressão
familiar; 12 de exploração sexual, prostituição e uso de drogas, e sete de uma
nova vida na reabilitação. “Eu nunca amei”, diz ela ao lembrar dos anos em que
se prostituiu. Ela conta ter tido seis filhos. Cinco deles foram frutos de
abuso e prostituição. “Eles não sabem. Não sabem quem são os pais deles. Nunca
contei. Tenho medo de que não entendam, de que me odeiem”, diz a mulher que,
atualmente, trabalha como zeladora com um novo companheiro, no Ceará. “Estou
aprendendo agora [a amar]“, diz ela (ouça seu relato no vídeo acima).
Adotada aos três anos, ela conta que fugiu de casa aos 13,
depois de cansar de apanhar da mãe adotiva. Nas ruas, ela conheceu uma menina e
acabou morando na casa da mãe dela, a cafetina que a levou pela primeira vez
pelo caminho da prostituição infantil. “O pior dia foi o primeiro, eu nunca
tinha feito aquilo. Foi no dia que cheguei. Eu chorava tanto, eu não queria,
ela me obrigou”, afirma ela, acrescentando que “foi estupro”.
Os clientes eram arranjados pela cafetina e os abusos
sexuais ocorriam em matagais na Região Metropolitana de Fortaleza. As
adolescentes ficavam com uma parcela pequena do dinheiro pago pelos abusos,
apenas o suficiente para comprarem drogas. A maior parte do dinheiro ficava com
a proprietária da casa.
“Até que eu engravidei e ela me expulsou. Eu tinha 15 anos.”
Ela foi morar em um quarto de taipa, nas ruas, onde mantinha
relação sexuais em troca de drogas, mesmo grávida. “Eu vivia suja. Eles [os
'clientes'] não ligavam”, conta. “Eu dei meu filho quando ele tinha um mês e 20
dias. Procurei minha mãe e dei pra ela. Eu não queria essa responsabilidade.
Até hoje ela cuida dele”, afirma Maria do Socorro que, dois meses após o
nascimento do primeiro filho, engravidou novamente do mesmo “cliente”.
A segunda gravidez trouxe um relacionamento fixo, uma nova
rotina e novos vícios. “Eu parei de me prostituir e fui pedir esmolas e comecei
a usar crack”, diz. Maria do Socorro criou a filha nestas circunstâncias até os
cinco anos. “Mas eu perdi a guarda dela porque me denunciaram.” Aos 20 e poucos
anos e viciada em drogas mais pesadas, ela largou o companheiro, que a
espancava, e foi em busca de clientes com mais dinheiro e mais exigentes. Ela
passou a se prostituir na Avenida Beira Mar, um dos principais pontos
turísticos de Fortaleza. “Aqui [no bairro em que vive] meus clientes eram
velhos e tudo acabava rápido, né? Pagava pouco. Lá [na Beira Mar] não, eles
queriam curtir a droga com a gente. Mas também demorava mais, era a noite toda.
Quando começava, eu queria era que acabasse logo”, conta.
Na Beira Mar, ela se envolveu com um estrangeiro e, como
muitas garotas, acreditou que o príncipe dos sonhos lhe daria uma vida melhor.
O homem, porém, desapareceu e, depois de um tempo, ela descobriu que estava
grávida novamente. “Pra mim foi o fundo do poço. Você grávida de uma pessoa que
você nem sabe quem é. Eu nunca engravidei na rua. Era uma vergonha”, disse ela,
que não sabe o nome ou o país de origem do pai de sua filha.
Após tentativas frustradas de provocar um aborto, ela foi
convencida a não dar sua filha para a adoção, e foi levada a um tratamento de
desintoxicação na Sociedade da Redenção. A estrada para a recuperação foi
árdua, e ela chegou a repetir o ciclo e bater na filha recém-nascida. “Eu
entrei em depressão e tinha tanta vergonha. Eu era que nem a minha mãe e eu me
sentia triste com isso.”
Há um ano e meio, Maria do Socorro encontrou um novo
companheiro com quem teve mais um filho, desta vez, planejado e com
acompanhamento médico. Os quatro vivem em uma pequena casa afastados do local onde
as lembranças eram mais fortes. “Muita coisa ficou, eu não deixo minha filha na
rua pra brincar, tenho medo.”
Maria do Socorro ainda pretende se reaproximar dos filhos
que vivem com sua mãe adotiva. Enquanto isso, ela ainda tenta se entender com o
próprio passado. “Minha filha que vive comigo vive perguntando quem é o pai
dela. Eu tenho vergonha, eu minto, cheguei a dizer que ele morreu.”
Dois dias presa em um ponto de prostituição
Com Joana*, de Pernambuco, a história não começou na
violência. Criada pela tia, ela diz não ter tido problemas em casa. Seu
problema existia nas ruas e se aproveitava de meninas imaturas que gostavam de
brincar desacompanhadas. “Eu gostava de sair, de conhecer o mundo, né”, afirmou
ela. Na noite de Ano Novo de 2008, com 17 anos recém-completos, a adolescente
acompanhou uma conhecida do bairro a outro local. A menina lhe disse que
precisava buscar uma troca de roupa para aproveitar o Réveillon. Chegando lá,
porém, Joana disse que se deparou com um espaço aberto lotado de homens, e
mulheres que faziam programa (ouça o depoimento acima).
Joana (nome fictício) sofreu violência sexual em um ponto de
prostituição quando tinha 17 anos (Foto: Mariana Frazão/TV Globo)
“Eu não sabia dos perigos que a rua causava. Achavam que eu
estava fazendo programa. Perguntavam se eu queria ficar com eles. ‘Você quer
ficar comigo? Eu lhe ajudo a voltar pra casa’”, reconta ela. Sem crédito no
celular, só depois de dois dias Joana conseguiu convencer um dos homens da
região a levá-la de volta ao seu bairro. Antes disso, porém, ela diz ter sido
obrigada a ficar com quatro homens contra a sua vontade, após sofrer ameaças de
agressão e propostas de programas pagos em trocados ou comida. Um dos homens a
ameaçou com uma arma e tentou impedir que ela tentasse ligar para a mãe.
Além de notar a presença de outras adolescentes no local,
ela diz ter conhecido um estrangeiro por lá. O homem, que segundo ela era
alemão, lhe disse que havia escutado várias vezes relatos de outras jovens como
ela.
Na volta para casa, com vergonha de enfrentar a mãe, Joana se
escondeu na casa de amigas e precisou ser acalmada pelos vizinhos. “Eu era
muito aventureira, por isso não avisei minha mãe aonde eu ia. Ela esperou por
mim três dias chorando”, relembra ela.
Nas ruas de Recife, Joana diz que abordagens de adolescentes
por homens adultos são comuns, independente de haver oferecimento por parte
delas. Ela afirma que, também com 17 anos, foi parada na rua por homem que lhe
ofereceu trabalho. Depois de anotar os dados pessoais dela, ele a conduziu a um
suposto escritório, onde tentou fazer com que ela posasse nua para fotos. Ao
perceber a armadilha, Joana se recusou e conseguiu fugir, ouvindo do homem que
ninguém acreditaria em sua história, se ela a contasse.
“Existem muitas pessoas que não têm nenhum instinto de ser
humano. Que esquecem o que é família, o que é vida, o que é criança, o que é
uma pessoa perdida”, afirma ela. Segundo Joana, esse tipo de pessoa pode se
aproveitar de adolescentes imaturas como ela foi um dia. “Principalmente na
Copa.”
Copa aumenta fatores de vulnerabilidade
Anna Flora Werneck, gerente de Programas da Childhood
Brasil, afirma que não é a Copa do Mundo que traz riscos de exploração sexual
infantil, “mas alguns fatores da Copa aumentam a vulnerabilidade para que isso
ocorra”. Ela cita a grande movimentação de pessoas, a antecipação das férias
escolares –que dá mais um motivo para os menores de idade ficarem ociosos–, a
oferta de bebida alcoólica e o trabalho informal. Além da Copa, esses fatores
também aparecem em outros eventos, como o Carnaval, as paradas LGBT e corridas
de Fórmula 1. Por isso, segundo ela, o problema não deve ser esquecido a partir
de 12 de julho.
Segundo ela, a exploração sexual infantil é móvel. “De certa
forma ela é visível, mas é invisível. Você descobre o ponto, divulga, e as
redes criminosas rapidamente vão para outro lugar.” Apesar disso, diz a
especialista, os espaços onde esse tipo de rede pode atuar sempre têm
semelhanças, principalmente fatores de vulnerabilidade. Entre eles estão
problemas familiares, incluindo maus tratos, e regiões com baixo índice de
desenvolvimento humano, como as favelas e comunidades mais pobres.
São fatores como esse que levam as crianças e adolescentes
às ruas, e lá as redes de tráfico de drogas e de prostituição não demoram a
encontrá-las.
De acordo com a Childhood Brasil, os efeitos da violência
são duradouros. Em pesquisa feita em 2009 com 69 adolescentes resgatadas de
situações de exploração sexual, 60,9% delas afirmaram que já pensaram no
suicídio. Dessas, 58,1% já tentaram tirar a própria vida. O número é dez vezes
mais alto que a média brasileira.
“Quando violência sexual acontece, normalmente outros
direitos já foram violados. Para garantir o direito, tem que garantir que a
criança não esteja na rua, não está vendendo drogas, não está em situação de
trabalho infantil, não está fora da escola, não se sente diminuída, insegura,
não está brincando no esgoto.”
Maura de Oliveira Lobo: depois de dez anos de violência, uma
ONG para resgatar crianças (Foto: Alexandre Durão/G1)
‘Escuridão’ é para sempre
A escritora, historiadora e funcionária pública Maura de
Oliveira Lobo já nasceu sem direitos. Era a década de 1970, bem antes do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e suas primeiras lembranças são de
quando ela tinha 4 anos de idade e vivia nas ruas do Rio de Janeiro com a
mulher que lhe deu o sobrenome Oliveira. “Não sei dizer onde eu nasci, porque
eu não tenho referência dos meus pais. Foi uma mulher da rua que me registrou.
Era uma mulher sem paradeiro”, reconta Maura, que adotou o sobrenome Lobo após
casar pela segunda vez, anos depois de conseguir se emancipar e escapar de uma
década de violência emocional, física e sexual.
O problema de Maura não foi a prostituição infantil, mas a
pedofilia na residência de uma família que a acolheu aos sete anos com o
intuito de fazê-la responsável pelo trabalho doméstico. Após sofrer três anos
de violência sexual do pai da família, ela passou outros sete nas mãos do genro
dele, que a tratava da mesma forma. Maura só conseguiu sair da tutela da
família aos 16 anos, idade em que, naquela época, a pessoa ganhava o direito de
ser ouvida pela Justiça.
Hoje, Maura tem a própria família e mantém uma ONG que
atende crianças em situação de exploração sexual infantil. “É uma ruptura, é
uma maldade tão grande que é para sempre. Para sempre vai se viver numa
escuridão dessa lembrança ruim. Eu posso lhe garantir que não tem volta.” Ela
afirma que é feliz, mas só conseguiu superar o que chama de “escuridão” depois
de começar a trabalhar para ajudar a resgatar outras crianças que passam pelo
mesmo que ela passou. “É triste ver que a mesma história ainda acontece. Ainda
existe muita exploração, muita violência infantil. É como se a gente olhasse
para trás e visse o mesmo filme todos os dias”, diz Maura.
Apesar de a grande maioria dos casos de pedofilia envolverem
familiares, os riscos de casos de exploração sexual infantil durante a Copa do
Mundo no Brasil preocupam a escritora. “Não existe uma criança se tornar uma
mulher. Não existe. Uma criança é uma criança tanto no seu corpo quanto na sua
alma”, afirma ela.
“Gostaria que os turistas olhassem para o futebol, olhasse
para as belezas naturais, mas nunca que olhassem para essas crianças
desejando-as. Que possam olhar para aquela criança e pensar em si próprio. Só
quando a pessoa consegue se colocar no lugar do outro ela consegue pensar na
dor alheia. Não é possível que três minutos de prazer seja suficiente para
destruir o futuro de uma vida.”
Ana Carolina Moreno, Diana Vasconcelos e Luna Markman
Fonte: Compromisso e Atitude
Acesse no site de origem: Ouça o que dizem mulheres que sofreram violência sexual na infância (G1/Política – 10/06/2014)
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