O contexto mundial atual das relações de gênero é marcado
por uma transição em que se abrem possibilidades efetivas para as mulheres e
outros grupos oprimidos ampliarem seus direitos e reivindicar novos níveis de
justiça, igualdade e liberdade, no entanto, o patriarcado tem desenvolvido uma
reação de caráter sistêmico gestando novas formas de exploração econômica, de
servidão cultural e de violência de gênero.
Por Maria Dolores de
Brito Mota
Olhando a situação das mulheres no Brasil, não há dia que
não ocorra um assassinato de mulheres por questões relacionadas a conflito de
gênero, quase sempre em situações de envolvimento afetivo – sexual, ou seja,
feminicídio praticado por homens com os quais as vítimas tiveram ou estavam
tendo um relacionamento sentimental. Nos últimos anos tem aumentado o número de
mulheres assassinadas no país, o que parece estar em contradição com o
significativo avanço dos direitos das mulheres e com a própria implementação da
Lei Maria da Penha, sancionada em 7/8/2006, que pune a violência doméstica
contra mulheres e cria mecanismos para um atendimento humanizado para aquelas
que sofrem dessa violência. Os dados nas tabelas abaixo mostram um crescimento
absoluto e relativo da violência fatal contra as mulheres no país e no Ceará,
ou seja, aquela que extermina a sua vida.
Não apenas o número de ocorrências desse crime é crescente,
mas a sua mecânica e suas modalidades estão se modificando e diversificando.
Tem sido crescente o feminicidio praticado por jovens adolescentes e vitimando
mulheres também cada vez mais jovens, embora siga concentrando as vitimas na
faixa entre 20 a 39 anos, conforme mostra Weiselfisz (2013). Temos verificado
um crescimento do feminicídio praticado em espaço público, feminicídio com
vítimas associadas (parentes, amigas e filhos/as das mulheres), feminicídio
seguido de suicídio, feminicídio por homofobia e preconceito, feminicídio
encomendado, e o feminicídio por associação e queima de arquivo praticado pelo
narcotráfico (já discuti isso em artigos anteriores). Vale destacar o
crescimento de feminicídios motivados pelo rompimento da relação sentimental
pela mulher e por sua recusa em continuar o casamento ou namoro.
Essa realidade mostrada pelos dados sobre o feminicídio no
Brasil, corrobora as teses de Rosa Cobo apresentadas no livro Hacia uma Nueva
Política Sexual – las mujeres ante a la reacción patriarcal (Madrid, Catarata,
2011), para quem os setores fanáticos do patriarcado mundial tem criado
respostas ao nível da exploração econômica, das opressões culturais e da
violência sexual com novos pactos interclassistas, inter-raciais e
interculturais para impedir as mulheres de alcançar a sua individualidade e
desprender-se do poder masculino.
Segundo a autora, as conquistas feministas tem posto em
cheque o contrato sexual – uma mulher para cada homem e umas poucas para muitos
– porque instituições fundamentais que regulam a sexualidade e sustentam esse
pacto estão sendo abaladas. Desse modo, quanto mais as mulheres conquistam
protagonismo, mais a família patriarcal enfraquece e aumenta a prostituição e o
tráfico de mulheres para exploração sexual. Afirma Rosa Cobo que "quanto
mais um pequeno grupo de mulheres reforça sua individualidade, mais agressivas
são as práticas masculinas para o resto delas”.Reconhece que entre os homens,
uma parcela significativa e crescente tem questionado esse pacto, mas alerta
que a globalização além de uma face econômica tem também uma face patriarcal
que se desenvolve sobre o contrato sexual em que a modernidade se gestou. Ora,
a primeira parte do contrato que garante a propriedade de uma mulher por cada
homem está vivenciando uma crise de legitimação, pois estão se debilitando as
hierarquias entre homens e mulheres em várias dimensões como no casamento, no
trabalho, na cultura etc, porque as mulheres tem lutado para conseguir direitos
e igualdades. A reação patriarcal tem impulsionado novas formas de dominação e
de violência contra as mulheres desencadeando agressões e feminicidios
generalizados, praticados contra as mulheres como categoria, despersonalizados,
apenas porque é contra uma mulher.
Evidentemente que essa reação é mais violenta em países e
regiões em que existe uma cultura de violência e de não respeito à vida e com
tradição de resolução não pacífica de conflitos, além de um machismo mais
acentuado, como é o caso de países da América Central, Latina, México e outros.
O Brasil apresenta todas essas características, desafiando estudos que revelem
as articulações entre esses elementos e as formas de violências e de
feminicídios em conexão com as relações de classe, raça-etnia, orientação
sexual, religião, nacionalidade. As novas formas de violência convivem com as antigas
e a força continua sendo um componente dos patriarcados contemporâneos. Sem
duvida os mecanismos patriarcais brotam da mesma fonte, mas é importante
conhecer suas manifestações e as motivações contextuais e culturais
especificas.
No que se refere à segunda parte do contrato, representada
pela instituição de poucas mulheres para muitos homens, temos visto um aumento
no tráfico de mulheres particularmente para exploração sexual, seja essa no
modo de prostituição, de servidão sexual ou de casamento servil. O mercado
sexual atualmente integra uma poderosa indústria do sexo que de um lado é um
dos pilares para uma nova moral sexual que ao invés de reprimir estimula a
prática do sexo em busca do prazer "não importa como”. Essa indústria
envolve redes de turismo sexual e de prostituição, filmes, objetos para o
prazer, remédios, livros, profissionais especializados, que se de um lado pode
favorecer a uma melhor experiência emocional e física com a sexualidade por
outro favorece a redes de tráfico humano para fins de exploração sexual,
estimula a proliferação de distúrbios sexuais, além da exploração e
objetificação de mulheres, transexuais, crianças.
Nesse contexto complexo atual, não se pode apenas tentar
justificar o aumento da violência e a banalização dos feminicidios no Brasil
pela fragilidade da Lei Maria da Penha. A questão é muito mais complicada, pois
se relaciona com um processo sistêmico, mundial, de constituição de novas e
globais formas de subordinação e de violência contra as mulheres. Sem menosprezar
os imensos desafios para a implementação e a eficácia dessa Lei, é preciso
considerar as novas estruturas de poder patriarcal que estão sendo criadas e
produzir estratégias para conceitualizar e desativar essas novas formas de
domínio e violação. São desafios para as feministas e seus aliados, para
podermos "combater as novas barbaridades do patriarcado e conquistar
espaços de liberdade, autonomia e igualdade para as mulheres”.
Fonte: Adital
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