terça-feira, 13 de maio de 2014

Feminicídio e a reação patriarcal contra as conquistas das mulheres

O contexto mundial atual das relações de gênero é marcado por uma transição em que se abrem possibilidades efetivas para as mulheres e outros grupos oprimidos ampliarem seus direitos e reivindicar novos níveis de justiça, igualdade e liberdade, no entanto, o patriarcado tem desenvolvido uma reação de caráter sistêmico gestando novas formas de exploração econômica, de servidão cultural e de violência de gênero.

Por Maria Dolores de  Brito Mota

Olhando a situação das mulheres no Brasil, não há dia que não ocorra um assassinato de mulheres por questões relacionadas a conflito de gênero, quase sempre em situações de envolvimento afetivo – sexual, ou seja, feminicídio praticado por homens com os quais as vítimas tiveram ou estavam tendo um relacionamento sentimental. Nos últimos anos tem aumentado o número de mulheres assassinadas no país, o que parece estar em contradição com o significativo avanço dos direitos das mulheres e com a própria implementação da Lei Maria da Penha, sancionada em 7/8/2006, que pune a violência doméstica contra mulheres e cria mecanismos para um atendimento humanizado para aquelas que sofrem dessa violência. Os dados nas tabelas abaixo mostram um crescimento absoluto e relativo da violência fatal contra as mulheres no país e no Ceará, ou seja, aquela que extermina a sua vida.


Não apenas o número de ocorrências desse crime é crescente, mas a sua mecânica e suas modalidades estão se modificando e diversificando. Tem sido crescente o feminicidio praticado por jovens adolescentes e vitimando mulheres também cada vez mais jovens, embora siga concentrando as vitimas na faixa entre 20 a 39 anos, conforme mostra Weiselfisz (2013). Temos verificado um crescimento do feminicídio praticado em espaço público, feminicídio com vítimas associadas (parentes, amigas e filhos/as das mulheres), feminicídio seguido de suicídio, feminicídio por homofobia e preconceito, feminicídio encomendado, e o feminicídio por associação e queima de arquivo praticado pelo narcotráfico (já discuti isso em artigos anteriores). Vale destacar o crescimento de feminicídios motivados pelo rompimento da relação sentimental pela mulher e por sua recusa em continuar o casamento ou namoro.
Essa realidade mostrada pelos dados sobre o feminicídio no Brasil, corrobora as teses de Rosa Cobo apresentadas no livro Hacia uma Nueva Política Sexual – las mujeres ante a la reacción patriarcal (Madrid, Catarata, 2011), para quem os setores fanáticos do patriarcado mundial tem criado respostas ao nível da exploração econômica, das opressões culturais e da violência sexual com novos pactos interclassistas, inter-raciais e interculturais para impedir as mulheres de alcançar a sua individualidade e desprender-se do poder masculino.

Segundo a autora, as conquistas feministas tem posto em cheque o contrato sexual – uma mulher para cada homem e umas poucas para muitos – porque instituições fundamentais que regulam a sexualidade e sustentam esse pacto estão sendo abaladas. Desse modo, quanto mais as mulheres conquistam protagonismo, mais a família patriarcal enfraquece e aumenta a prostituição e o tráfico de mulheres para exploração sexual. Afirma Rosa Cobo que "quanto mais um pequeno grupo de mulheres reforça sua individualidade, mais agressivas são as práticas masculinas para o resto delas”.Reconhece que entre os homens, uma parcela significativa e crescente tem questionado esse pacto, mas alerta que a globalização além de uma face econômica tem também uma face patriarcal que se desenvolve sobre o contrato sexual em que a modernidade se gestou. Ora, a primeira parte do contrato que garante a propriedade de uma mulher por cada homem está vivenciando uma crise de legitimação, pois estão se debilitando as hierarquias entre homens e mulheres em várias dimensões como no casamento, no trabalho, na cultura etc, porque as mulheres tem lutado para conseguir direitos e igualdades. A reação patriarcal tem impulsionado novas formas de dominação e de violência contra as mulheres desencadeando agressões e feminicidios generalizados, praticados contra as mulheres como categoria, despersonalizados, apenas porque é contra uma mulher.

Evidentemente que essa reação é mais violenta em países e regiões em que existe uma cultura de violência e de não respeito à vida e com tradição de resolução não pacífica de conflitos, além de um machismo mais acentuado, como é o caso de países da América Central, Latina, México e outros. O Brasil apresenta todas essas características, desafiando estudos que revelem as articulações entre esses elementos e as formas de violências e de feminicídios em conexão com as relações de classe, raça-etnia, orientação sexual, religião, nacionalidade. As novas formas de violência convivem com as antigas e a força continua sendo um componente dos patriarcados contemporâneos. Sem duvida os mecanismos patriarcais brotam da mesma fonte, mas é importante conhecer suas manifestações e as motivações contextuais e culturais especificas.

No que se refere à segunda parte do contrato, representada pela instituição de poucas mulheres para muitos homens, temos visto um aumento no tráfico de mulheres particularmente para exploração sexual, seja essa no modo de prostituição, de servidão sexual ou de casamento servil. O mercado sexual atualmente integra uma poderosa indústria do sexo que de um lado é um dos pilares para uma nova moral sexual que ao invés de reprimir estimula a prática do sexo em busca do prazer "não importa como”. Essa indústria envolve redes de turismo sexual e de prostituição, filmes, objetos para o prazer, remédios, livros, profissionais especializados, que se de um lado pode favorecer a uma melhor experiência emocional e física com a sexualidade por outro favorece a redes de tráfico humano para fins de exploração sexual, estimula a proliferação de distúrbios sexuais, além da exploração e objetificação de mulheres, transexuais, crianças.

Nesse contexto complexo atual, não se pode apenas tentar justificar o aumento da violência e a banalização dos feminicidios no Brasil pela fragilidade da Lei Maria da Penha. A questão é muito mais complicada, pois se relaciona com um processo sistêmico, mundial, de constituição de novas e globais formas de subordinação e de violência contra as mulheres. Sem menosprezar os imensos desafios para a implementação e a eficácia dessa Lei, é preciso considerar as novas estruturas de poder patriarcal que estão sendo criadas e produzir estratégias para conceitualizar e desativar essas novas formas de domínio e violação. São desafios para as feministas e seus aliados, para podermos "combater as novas barbaridades do patriarcado e conquistar espaços de liberdade, autonomia e igualdade para as mulheres”.

Fonte: Adital

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