A corajosa entrevista que Xuxa deu ao Fantástico, revelando
que sofreu abuso sexual na infância, ajudou a pôr em discussão essa violência
inaceitável. Depois da entrevista, as denúncias de casos de abuso aumentaram
muito. Vamos conhecer a
história de duas jovens: a primeira rompeu o silêncio, mas não encontrou ajuda
dentro de casa. Pelo contrário. A segunda, foi abusada pelo padrasto e tenta
recomeçar a vida com o apoio da mãe.
No aconchego de casa, diante dos olhos da família, de onde
menos se espera: “Não tem lugar, não tem forma, não tem nível social, lugar,
hora, característica da pessoa. Não dá pra imaginar.”, diz Bárbara.
O abusador não
poderia estar mais próximo: “Eu convivia com o meu pai. O perigo morava ao lado,
no quarto ao lado”, conta.
Quem suspeitaria do pai, um advogado de prestígio,
integrante da comissão de direitos humanos da OAB de uma rica cidade do
interior paulista?
“Era sempre quando eu tava dormindo, era sempre de
madrugada. Aí eu acordava, ele já tava com a mão nos lugares, assim, fazendo
todas as coisas”, revela.
Começou aos sete anos de idade. Noites a fio: “No outro dia
dava ‘bom dia, tudo bem com você?’. Sabe um negócio de louco? Você acha que é
coisa de filme, que é surreal. Como assim? O que está acontecendo?”
Aos onze anos, achou que aquilo não era normal e procurou a
mãe: “Falei pra ela: ‘Mãe, meu pai faz umas coisas estranhas comigo, ele vai à
noite, ele fica passando a mão em mim’”.
“A minha mãe chorou muito, parecia que ela ia tomar alguma
atitude”, lembra.
Mas em vez de enfrentar o marido, a mãe silenciou.
Eu falei: "Como assim? Minha mãe mentiu pra mim? Ela
falou que ele ia parar e continuou. Por que?”
Aos 16 anos, ameaçou ir à delegacia. O pai se assustou: “Só
parou quando eu enfrentei. Só. Senão teria continuado não sei até quando”.
Mas no ano passado, já com 19 anos, estudando Direito na
Universidade, ela soube que o pai fazia o mesmo com o irmão menor e com uma tia
mais jovem do que ela. Foi quando o denunciou à polícia.
“É preciso denunciar porque é a pior coisa que existe, abuso
sexual contra criança, tirar inocência de criança. Não se faz isso”, diz.
Em vez de apoiá-la, a mãe, mais uma vez, ficou ao lado do
marido: “Não dá pra entender a minha mãe. Sabe, o pior é que eu amo ela. Mas
que amor é esse que ela tem pela gente que ela não faz nada?”
O pai, acusado de violência sexual, nega tudo. E diz que a
filha inventou a história. Ele e a mãe, acusada de omissão, chegaram a ser
levados ao presídio. A mãe conseguiu liberdade provisória.
O pai está em prisão domiciliar com autorização especial
para trabalhar. A jovem não mora mais com eles. Do sofrimento acumulado veio a
decisão de romper o silêncio.
“Não algo que você sai falando pra todo mundo. Menor de
idade, com 15, 14 anos, não dá pra dizer: ‘sabe de uma coisa? O meu pai abusou
sexualmente de mim’. Você não sai falando isso. Isso é uma coisa que você sente
vergonha”, conta.
Ao revelar ao Fantástico, no domingo passado, o abuso sexual
que sofreu, Xuxa trouxe à luz a angústia de quem passa por isso. No dia
seguinte, o número de ligações para o disque 100, serviço do governo federal
que recebe denúncias de violação aos direitos humanos, saltou dos habituais 80
mil para 112 mil telefonemas em um só dia. Um aumento de quase 50%. Em grande
parte dos casos, a família demora a perceber que algo está errado.
O hospital Pérola Byington, de São Paulo, referência no
atendimento de vítimas de violência sexual, registra de 12 a 14 casos por dia.
A metade é de crianças e adolescentes.
Os registros do hospital mostram uma clara diferença entre a
violência sexual sofrida por mulheres adultas e por crianças. No caso das
mulheres, o agressor é um desconhecido que age em lugares públicos. No caso das
crianças, o abuso acontece dentro de casa por pessoas que deveriam protegê-las.
Como então identificar quando isso ocorre? Para a equipe
médica, mudanças bruscas de comportamento podem ser reflexo de violência
sexual.
“Crianças que já tenham superado essa fase de
desenvolvimento e voltam a fazer xixi na cama no período noturno, crianças que
passam a ter um temor específico de ficar sozinhas com determinado adulto,
crianças que por marcas da violência que possam ter vão utilizar roupas
fechadas num período de calor, incompatível com aquele ambiente, enfim, a
criança sempre dá o sinal de que algo não vai bem na vida dela”, diz Jefferson
Drezett, médico.
Se soubesse disso antes, talvez esta mulher não estivesse
tão martirizada por não perceber o sofrimento da filha: “Às vezes fico me perguntando
se realmente é verdade o que eu estou vivendo. Sempre o que eu preservei na
minha vida foi os meus filhos”.
Ela ficou sabendo há apenas um mês que a filha foi abusada e
estuprada pelo padrasto durante nove anos.
“Nunca falei nada para ninguém”, diz Dalila, para em seguida
explicar: “Por medo do que ele pudesse fazer. Ele falava assim: se você falar
alguma coisa, se você abrir a boca, a primeira pessoa que vai é a sua mãe.
Depois vão seus irmãos”.
Mês passado, em uma roda de amigas, ela finalmente resolveu
contar: “Foi a primeira vez que eu consegui falar alguma coisa pra alguém”.
Uma das amigas fez a denúncia. Aos policiais, a jovem, que
hoje tem 16 anos, disse ter sido abusada pela primeira vez aos sete.
“Dos 7 aos 10, ele ainda brincava. Aí, tipo, depois da
primeira menstruação que acontecia mesmo o sexo em si”, diz Dalila.
“Depois dos 14 ele marcava dia na semana. Ele marcava tipo
segunda e terça, ou terça e quinta, vamos supor. Ele marcava esses dois dias.
Era obrigado. Quando eu fiz 15 anos aí começou três vezes por semana”, conta.
“Engravidei diversas
vezes. Perdi as contas. Foram muitas vezes mesmo”.
O próprio padrasto providenciava o que seriam medicamentos
abortivos: “Ele me deu remédio pra abortar mesmo, pra matar. Entregava os
comprimidos na minha mão e eu tomava”.
O padrasto está preso. A mãe não quer vê-lo nunca mais.
Longe do agressor, é hora de refazer a vida: “Querendo ou não ele destruiu a
melhor parte da minha vida, que foi a minha infância. Mas agora é seguir em
frente”, conta ela.
“Agora eu posso viver a minha vida, agora eu posso ir atrás
do que eu sempre quis pra mim. Que ele não deixava ter”, conclui.
Assista ao vídeo da
reportagem ou acesse o texto da reportagem em pdf: Após depoimento de Xuxa,
vítimas são estimuladas a denunciar abuso (Fantástico/Rede Globo - 27/05/2012)
Fonte: Globo
Aumentam as denúncias de violência contra crianças e adolescentes, mas
ainda é preciso avançar no atendimento às vítimas e na punição dos culpados
Ao o romper o
silêncio e contar, na tevê, ter sido vítima de abuso sexual na infância, a
apresentadora Maria da Graça Meneghel, a Xuxa, jogou luz sobre um tema que
somente agora a sociedade começa a encarar de frente. O resultado mais imediato
do depoimento foi o aumento de ligações para o Disque Direitos Humanos, o
Disque 100. Nos dois dias seguintes ao seu desabafo, no domingo 20, o principal
canal de denúncias de violência contra crianças e adolescentes recebeu 285 mil
ligações, 30% a mais do que nos mesmos dias da semana anterior. Um pico como
esse é raro, mas o histórico do Disque 100 mostra um crescimento do número de
ligações ano a ano (leia quadro), reflexo do maior conhecimento das pessoas
sobre o tema. O primeiro passo para resolver o problema é saber suas
proporções, mas o caminho até a superação do trauma por parte da vítima e a
punição de seu algoz é longo. E nisso o Brasil está apenas engatinhando.
As denúncias chegam,
em geral, por conhecidos das vítimas, raramente pelas pessoas abusadas. “Por um
misto de medo e culpa, muitas delas passam décadas sem compartilhar a dor com
ninguém”, explica a psicóloga Elizabeth Vieira Gomes, do Comitê Nacional de
Enfrentamento de Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Xuxa levou
mais de 30 anos para assumir publicamente os abusos. O silêncio de L. durou 12
anos. “Eu tinha medo de ninguém acreditar em mim, ele era uma pessoa em quem
todos confiavam”, conta. Ela não tinha mais de 4 anos quando o avô lhe disse
“olha o que eu tenho aqui, é diferente do que você tem”, e lhe mostrou seu
órgão sexual. A carioca de 31 anos não se lembra de detalhes desse dia, mas tem
recordações claras das carícias sexuais que ele lhe fez aos dez anos. “Eu sabia
que era errado porque ele me pedia que não contasse a ninguém e porque nenhum
outro adulto fazia aquilo comigo”, diz. Só aos 16 anos ela confessou o ocorrido
à mãe. “Passei esse tempo nutrindo ódio pelo meu avô sem nunca revelar a
razão”, diz ela.
As reações de descrença em Xuxa manifestadas nas redes
sociais também acontecem com anônimos. Muitas vezes, por parte de quem deveria
ajudar a vítima. “É comum os médicos e os policiais dizerem que tudo não passou
de ‘sem-vergonhice’ da pessoa que sofreu o abuso”, afirma Waldemar Oliveira, do
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan da Bahia (Cedeca).
Em alguns hospitais do País, porém, a situação é diferente. No Hospital das
Clínicas de São Paulo, por exemplo, funciona há dez anos o Núcleo de
Assistência à Vítima de Violência Sexual (Navis). Trata-se de um grupo formado
por enfermeiros, assistentes sociais e médicos de várias especialidades que se
empenham em prestar atendimento rápido e eficiente a quem precisa. “Os casos de
violência sexual exigem muita sensibilidade”, diz a médica Ivete Boulos,
coordenadora do Núcleo. As vítimas, e, às vezes, alguns familiares, também
recebem acompanhamento psicológico por, no mínimo, seis meses.
“O médico precisa estar preparado para fazer o primeiro
acolhimento, pois os remédios que podem prevenir Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs) só são eficientes nas 72 horas posteriores à agressão”,
diz Ivete. Segundo ela, há pessoas que chegam anos depois de terem sofrido a
violência e são diagnosticadas com doenças como sífilis e vários problemas
psicológicos. Em outros casos, pais levam os filhos para tratar problemas de
saúde e os médicos detectam a existência de DSTs. Serviços desse tipo também existem
em cidades como Ribeirão Preto, Campinas, Belo Horizonte, Curitiba e Goiânia,
mas ainda não estão presentes na maior parte do País.
Nas esferas legislativa e jurídica também são necessárias
adaptações. O avanço mais recente foi a sanção da lei que define que o tempo de
prescrição do crime de abuso sexual conta a partir dos 18 anos da vítima. No
campo jurídico, as mudanças começaram na década de 1990 com a criação de varas
especializadas em infância e juventude. “Nas varas comuns, o objetivo é prender
o suspeito, nas especializadas a prioridade é acolher as vítimas”, explica
Lélio Ferraz de Siqueira Neto, promotor de Justiça da Infância e Juventude do
Ministério Público de São Paulo. Para isso, os membros recebem treinamentos
especiais e até alguns dos processos são revistos. Em São Paulo, a criança
presta depoimento uma única vez e não precisa repetir a história para o
delegado, depois para o promotor e assim por diante.
Essas varas especializadas agilizam o julgamento dos casos.
De acordo com levantamento realizado pelo Cedeca da Bahia, antes da criação da
primeira vara especial do Estado, em 1997, a maioria dos processos de abusos
sexuais demorava tanto tempo para ser julgada que prescrevia. Com as varas
especializadas, o problema praticamente acabou e o tempo de tramitação, que
antes variava entre seis e dez anos, passou a ser, no máximo, de dois anos. No
entanto, ainda existem pouquíssimas dessas varas no País. A média é de um juiz
especializado para atender quase 400 mil pessoas. Essa deficiência, aliada à
dificuldade em se conseguir provas de uma agressão que acontece, na maioria das
vezes, dentro da casa das vítimas, resulta em um enorme número de casos sem
solução. É preciso mudar essa realidade.
Fonte: IstoÉ
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