“Senhor, dá-me dessa água, para
que eu não tenha mais sede...” (Jo 4,15)
Como a samaritana, também diante
de nós se apresenta uma alternativa: continuar buscando água viva e
justificação em poços secos e esgotados ou eleger “vida eterna” e deixar-nos
arrastar pela oferta de transformação proposta pelo Jesus que nos busca, porque
deseja ampliar nossa existência e comunicar-nos alegria e plenitude.
A reflexão bíblica é elaborada
por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 3° Domingo
do Tempo de Quaresma (19/03/2017) que corresponde ao trecho de João 4, 5-42.
Comprovamos hoje uma atrofia ou
um “déficit de interioridade”, pois a volatilidade das sensações passageiras
nos dificulta ter acesso à nossa própria identidade.
Continuamente chegam até nós,
sensações inteligentes e sedutoras elaboradas pelos técnicos da publicidade em
laboratórios e ilhas de edição e semeadas na nossa afetividade subconsciente.
Estamos rodeados por telas iluminadas (tvs, smart, tablets, computadores...)
que emitem uma mensagem “interessada” e nos forçam a permanecer na superfície
de nós mesmos, esvaziando-nos de toda densidade humana.
Precisamos re-descobrir uma
pedagogia que nos conduza até o mais profundo de nossa intimidade, onde o
Espírito alimenta a originalidade de nosso ser único, através de uma fonte que
nunca se esgota.
Precisamos, sob a ação da Graça,
destravar nosso centro vivo e sempre inédito, de tal maneira que brote a
novidade que tudo renova e plenifica nossa existência.
Vamos, pois, buscar inspiração no
encontro instigante de Jesus com a Samaritana, junto a um poço.
Assim como a água, necessária
para a vida, é preciso extraí-la do fundo da terra, também a água do Espírito é
preciso tirá-la das profundezas de si mesmo.
No início do relato vemos uma
mulher caminhando em direção ao poço de Siquém em busca de água; ela vive um
“eu fragmentado”, perdida em sua solidão, sedenta de um sentido para sua
existência...
Tinha graves problemas, estava
confusa, em toda sua vida havia buscando o grande amor. No entanto, seus
casamentos fracassados continuavam a perturbá-la. Era uma mulher que havia se
perdido no caminho: tantos cântaros quebrados, tantos pedaços para recolher.
Jesus rompe com as fronteiras
culturais e religiosas, assenta-se junto ao poço de Jacó e, através de um
diálogo provocativo, ajuda a mulher samaritana a encontrar, dentro dela mesma,
esse centro de onde mana sem cessar uma água que mata a sede, e não buscá-la em
tantos poços secos ou rachados.
Com sua presença instigante,
Jesus ajuda a mulher a integrar suas rupturas existenciais, reconstruindo-a
como pessoa, a partir de sua própria interioridade.
O encontro com Jesus fez a
samaritana viver uma verdadeira “páscoa”, passando de uma vida trivial e
dispersa à missão de anunciar aos outros Aquele com quem se havia encontrado.
Como uma água “que jorra para a vida eterna”, uma torrente de gratuidade
percorre a cena e transfigura a mulher. Ela foi sendo conduzida até sua própria
interioridade através de um paciente processo que a fez passar da dispersão à
unificação, da exterioridade à interioridade, da desarmonia à unidade interior,
da solidão à comunhão com os outros.
Ela entra em cena como “uma
mulher da Samaria” e sai dela como conhecedora do manancial de “água viva”,
consciente de ser buscada pelo Pai para fazer dela uma adoradora. Sua
identidade transformada a converte em uma evangelizadora que consegue, através
de seu testemunho, que muitos se aproximem de Jesus e creiam nele. Aquela que
falava de “tirar água” como uma tarefa de esforço e trabalho, abandona agora
seu cântaro: Jesus a fez descobrir um dom que lhe é entregue gratuitamente.
Na realidade, ela passou a ter a
sensação de estar nascendo pela primeira vez e que Deus a amava. Caíam as
etiquetas. Tudo o que tinha sido, a samaritana, filha de sangues misturados e
de religião meio pagã, a mulher com uma vida afetiva fracassada, a amante que,
depois de compartilhar sua vida com seis homens, duvidava de ter sido amada de
verdade alguma vez... tudo aquilo parecia deixar de existir.
Os véus que cobriam o verdadeiro
rosto da mulher do cântaro vazio, foram levados pelo vento. Ela se tornou
“pessoa”.
Estamos, aqui, diante de uma vida
em processo. Ao longo do relato assistimos a tentativa da mulher de permanecer
em um nível superficial e mover-se em seu diálogo com Jesus no âmbito da
superficialidade. Uma e outra vez ela procura escapar e desviar a conversação
para terrenos que não permitem descer em sua profundidade e que não a deixam
enfrentar-se com a verdade de sua existência.
Mas ela não contava com a
tenacidade de Jesus e com sua determinação de alargar aquela vida atrofiada. Ao
longo do encontro, Ele é o verdadeiro protagonista, o condutor da cena e aquele
que marca as estratégias da conversação.
Como hábil pescador, Jesus joga
suas redes e lança seus anzóis para tirar a mulher, com quem dialoga, das águas
enganosas da trivialidade e do desejo de auto-justificação que a afogam.
Como bom pastor que conhece suas
ovelhas, Jesus a faz sair do deserto da superficialidade, vai guiando-a para a
profundidade e autenticidade, para a terra do dom da água viva.
Como amigo que busca criar
relações pessoais, em nenhum momento emite juízos morais de desaprovação ou
condenação: em lugar de acusar, prefere dialogar e propor, emprega uma
linguagem dirigida ao coração da mulher.
Como “expert” em humanidade,
Jesus mostra-se profundamente atento e interessado pela interioridade de sua
interlocutora e lhe faz descobrir o manancial que pode brotar do mais profundo
dela mesma.
Revela-lhe também a interioridade
de Deus como Pai que busca adoradores em espírito e em verdade.
Jesus desperta a samaritana a
cair na conta que é preciso abrir-se a um “manancial” novo, que lhe vem através
d’Ele e que “brota em seu interior” de um modo permanente. Ele é o manancial e
com sua presença desperta o manancial interior da samaritana, entupido.
“Dá-me um pouco de sede porque
estou morrendo de água!”
Eis o clamor da nossa geração que
tendo quase tudo, parece que não consegue descobrir o sentido da própria
existência. Morre de sede junto ao poço de água viva.
A sede se refere à busca de
sentido presente em todo ser humano, busca daquilo que traz definitivamente a
paz: a “água viva” que coincide com o “dom de Deus”.
Por isso, o relato se situa
intencionadamente em chave de oferta: “se conhecesses o dom de Deus...”
Acabou-se o tempo dos templos; a
adoração passa pelo coração, é interior e verdadeira, corresponde a uma vida em
fidelidade.
A experiência acontece quando
escutamos em nosso interior o “eco” que a água viva produz, saciando nossos
desejos mais plenos. “Uma água viva murmura dentro de mim e me diz: Venha para
o Pai” (S. Inácio de Antioquia)
Como a samaritana, também diante
de nós se apresenta uma alternativa: continuar buscando água viva e
justificação em poços secos e esgotados ou eleger “vida eterna” e deixar-nos
arrastar pela oferta de transformação proposta pelo Jesus que nos busca, porque
deseja ampliar nossa existência e comunicar-nos alegria e plenitude.
Para meditar na oração
A cena do encontro de Jesus com a
samaritana nos remete à experiência fundante de nossa vida. Tal experiência
significa abertura, dilatação do coração, expansão da consciência ao ver que
tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que
mergulha no Mar).
A experiência de oração junto ao
nosso poço nos conduz à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava
ressequida, impedindo-nos de reconhecer o murmúrio da água viva.
De quê tenho sede? Onde busco
saciar minha sede?
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