Apesar de condenada pela ONU,
países da África e no Oriente Médio mantêm a prática; a mutilação consiste em
cortar partes do clitóris e dos pequenos e grandes lábios da vagina.
A gaze ao redor do tornozelo
esquerdo da pequena Boche, de 10 anos, esconde o que seu olhar triste não
consegue disfarçar. Após se recusar a ter as partes genitais mutiladas, a
criança que mora em uma aldeia do norte da Tanzânia teve o pedaço da pele da
perna arrancada à faca pelo próprio pai.
Boche, de 10 anos,
teve pedaço do tornozelo arrancado pelo pai na Tanzânia por se recusar a se
submeter à mutilação genital (Foto: Reprodução/Tanzania Development Trust)
Boche faz parte do contingente de
milhões de meninas e mulheres que vivem em países da África e do Oriente Médio
onde persiste a prática da mutilação genital feminina, uma tradição de ao menos
cinco mil anos de história que consiste em cortar partes do clitóris e dos
pequenos e grandes lábios da vagina. Em alguns locais o corte ainda é feito à
navalha.
O procedimento teria função
sanitária – a mulher se tornaria mais limpa após o ato – e também atenderia a
questões culturiais: o clitóris é visto por sociedades patriarcais como a falsa
representação do pênis e, portanto, competiria com a virilidade masculina. Na
maioria dos casos, a mutilação da vagina veta à mulher o direito ao prazer
sexual.
Boche, de 10 anos, teve pedaço do
tornozelo arrancado pelo pai na Tanzânia por se recusar a se submeter à
mutilação genital
Boche, de 10 anos, teve pedaço do
tornozelo arrancado pelo pai na Tanzânia por se recusar a se submeter à
mutilação genital (Foto: Reprodução/Tanzania Development Trust)
De acordo com o Fundo das Nações
Unidas para a Infância, o Unicef, a mutilação genital é realizada em cerca de 3
milhões de meninas e mulheres todos os anos e se concentra em 29 países entre o
continente africano e o Oriente Médio.
Até agora, mais de 130 milhões de
meninas e mulheres já foram submetidas ao procedimento e, se essa tendência for
mantida, outras 30 milhões poderão ser mutiladas nos próximos dez anos. Somado
ao impacto do crescimento populacional, o índice pode atingir 63 milhões até
2050, de acordo com o Unicef.
“De todas as histórias que eu já
presenciei, a de Boche é a que mais me comoveu. Ela é só uma criança…”, diz ao
iG Julian Marcus, presidente da Tanzânia Development Trust (TDT), ONG que
acolhe vítimas da mutilação e ajuda a erradicar a cultura no país e para onde
Boche foi encaminhada.
Entre os países que praticam a
circuncisão feminina, a Somália tem o maior número de casos: 98% das mulheres
entre 15 e 49 anos já tiveram a vagina mutilada, segundo o estudo “Female
Genital Mutilation/Cutting: A statistical overview and exploration of the
dynamics of change”, do Unicef, divulgado em 2013. A Guiné tem o segundo maior
índice, 96%. Djibouti e Egito têm, respectivamente, 93% e 91% da população
feminina mutilada. Em Eritreia e no Mali, o número chega a 89%. Em Serra Leoa e
no Sudão, a prevalência é de 88%.
Formas de mutilação
Em dezembro de 2012, uma
resolução da ONU (67/146) condenou a prática. Para dribá-la, no entanto, alguns
países têm medicalizado o procedimento. No Egito, por exemplo, o corte no
clitóris é feito superficialmente por profissionais de saúde treinados, o que
reduz o risco de infecções e morte da paciente.
Mas esse não parece ser o
procedimento padrão em todos os países listados pelo Unicef. Théo Lermer,
ginecologista, sexólogo e colaborador do ambulatório de sexualidade do Hospital
das Clínicas (HC), explica que tribos ainda realizam a mutilação genital
extrema, onde a mulher tem o clitóris e os pequenos lábios arrancados por meio
de facões e navalhas sem o menor nível de profilaxia.
“Nesses casos, a vagina é
costurada e se torna, basicamente, os orifícios para urinar e menstruar. Depois
disso, durante a relação sexual, essa mulher sente bastante dor e, quando
engravida, corre sério risco de morrer. Se ambos sobreviverem, é provável que a
mulher sofra com fístulas”, afirma.
Para Melanie Sharpe, assessora de
imprensa do Unicef em Nova York, “acabar com a mutilação genital não é uma
questão de simplesmente impor valores. O fim da prática é uma ação que inclui
governos nacionais, líderes religiosos locais, os meios de comunicação e o mais
importante, comunidades e famílias”.
Mapa dos países com
maior número de mulheres e crianças submetidas à mutilação genital na África
(Foto: Reprodução/Unicef)
Questão de cultura
A origem da mutilação genital
feminina é milenar, mas incerta. Segundo Olga Regina Zigelli Garcia,
pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), há estudiosos que apontam para a época da venda de escravas no
mercado árabe – elas seriam circuncidadas antes do negócio. Outros falam da
invasão do Vale do Nilo por tribos nômades que realizavam o procedimento e o
espalharam pelo Egito e países vizinhos por difusão nos anos 3.100 a.C.
Para Claudio Bertolli Filho,
professor de antropologia da Unesp, Universidade Estadual Paulista, como a
mutilação genital feminina tem uma representatividade grande nas sociedades
africanas, sua permanência deve ser discutida e, em muitos casos, respeitada.
“Essa é uma cultura que passa de
geração para geração. Para nós, por exemplo, é normal a mulher fazer cirurgia
de reconstituição de hímen para ficar virgem novamente. Se a circuncisão não
for total e a mulher quiser manter a tradição, não acho que deveria ser
erradicada”, pondera.
Já a socióloga Olga considera a
mutilação genital uma violação dos direitos humanos e herança das sociedades
patriarcais e, por isso, não deve ser mantido apenas por seu “questionável
valor cultural”.
“A prática, além de violar a
dignidade humana, também viola os direitos da criança, já que meninas entre
quatro e oito anos também são violadas. Não podemos legitimar crueldades e
desigualdades com a desculpa da tradição”, afirma.
Foi para apresentar a filha à
sociedade que o pai da tanzaniana Verônica, de 14 anos, quis obrigá-la a se
submeter ao ritual. Durante seu relato para a ONG que a acolheu, a jovem
afirmou ter sido informada de que “deveria ser mutilada porque tinha terminado
a escola primária e já tinha idade para casar.”
Mapa dos países com maior número
de mulheres e crianças submetidas à mutilação genital na África
Mapa dos países com maior número
de mulheres e crianças submetidas à mutilação genital na África (Foto:
Reprodução/Unicef)
Como se recusou, a adolescente
passou a ser espancada sistematicamente pelo pai. “Meu pai dizia que com a
mutilação eu teria um dote maior. Seriam cinco vacas que meu pai utilizaria
para vender e mandar meu irmão para uma escola particular”, disse ela em depoimento
à BBC. Verônica fugiu de casa e buscou refúgio na Tanzânia Development Trust
(TDT).
O Fundo de População das Nações
Unidas, que atua em 22 países do continente, afirma que cerca de oito mil
comunidades na África concordaram em abandonar a mutilação genital feminina. De
acordo com Melanie Sharpe, foi criado em 2008 um programa conjunto entre o
Unicef e o UNFPA para acelerar a mudança em 15 países da África Ocidental,
Oriental e do Norte.
Cenário econômico e social
A baixa escolaridade e os níveis
expressivos de pobreza ajudam a difundir e manter a prática no continente
africano, segundo a ONU. O continente, cuja população geral ultrapassa os 889
milhões de habitantes, tem algumas das áreas com os piores níveis de saneamento
básico do mundo.
Na África Subsaariana – que
abrange países como Tanzânia, Somália, entre outros – o porcentual de
saneamento básico não passa de 30%. Metade da população vive com menos de um
dólar por dia e até dois terços dos países estão entre os que têm os menores
IDHs.
É nessa região que há também a
maior prevalência de favelas urbanas do planeta: elas devem abrigar 400 milhões
de pessoas em 2020. O rápido crescimento urbano e a falta de planejamento têm
aumentado os assentamentos impróprios e, por consequência, o número de
catástrofes recorrentes de desabamentos, entre outros.
Fonte: Compromisso e Atitude
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