segunda-feira, 27 de abril de 2015

Trabalho doméstico: a herança que já não nos serve

Apesar das mudanças que a aprovação da PEC das Domésticas proporcionou, certas coisas permanecem, como a discriminação a que são expostas essas trabalhadoras, os elevadores de serviço, os baixos salários, o assédio moral, as poucas garantias e etc. Assim, cabe ao movimento feminista se colocar na luta com as trabalhadoras domésticas e fomentar a discussão da realização do trabalho doméstico, não apenas do ponto de vista do trabalho que não é realizado pelo homem, mas do trabalho que é realizado por assalariados.

Texto de Mariana Raquel. 27 de abril, Dia da Trabalhadora Doméstica.

Em 2008, eu ingressei na faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) como cotista racial. Muitas coisas me marcaram nesse processo, dentre elas um debate que foi realizado na minha primeira semana de aula pelo Centro Acadêmico.
O tema do debate era o trabalho doméstico, naquela época a aprovação da PEC das Domésticas era apenas um sonho e os alunos debatiam a importância de igualar em direitos os trabalhadores domésticos aos demais trabalhadores.
Durante o debate, muitos alunos deram depoimentos emocionados da importância das trabalhadoras domésticas em suas vidas, dizendo como elas tinham contribuído para a sua educação e como elas estiveram sempre presentes. Naquele momento, ouvindo aqueles alunos, pela primeira vez na vida eu percebi com clareza a dimensão do trabalho que minha mãe e tantas outras mulheres da minha família desempenharam por anos.
Naquele momento eu percebi que o trabalho realizado pelas mulheres pobres e em sua maioria pelas mulheres negras, nos lares da classe média, foi essencial para a emancipação da mulher branca e burguesa. Assim, quando as mulheres saíram de casa para trabalhar, o seu papel foi substituído por trabalhadoras assalariadas que limpavam suas casas, davam de comer aos seus filhos, levavam seus cachorros para passear e cuidavam de suas crianças enquanto elas consumiam cultura.
Certa vez, conversando com a minha mãe sobre educação, ele me disse que se ressentia por nenhuma das suas empregadoras tê-la incentivado a voltar a estudar. Minha mãe começou a trabalhar com 15 anos, quando saiu de sua casa no interior do Paraná, para trabalhar em São Paulo como doméstica, sem conhecer ninguém na cidade além da família para a qual trabalhava.
Minha mãe trabalhou para mulheres formadas, para professoras universitárias, mas nenhuma delas a incentivou a trilhar outro caminho. Isso me faz pensar no porque a valorização das trabalhadoras domésticas nunca ter sido, efetivamente, pauta do movimento feminista, mesmo que a mão-de-obra do trabalho doméstico no Brasil seja composto mais de 90% por mulheres.
A grande verdade é que muitas mulheres do movimento feminista preferem pagar para que outras mulheres limpem suas casas, para terem tempo de ler Marx e pensar na revolução, pensando que apenas pagar um salário justo e tratar bem o funcionário é fazer a sua parte. Mas eu não vejo uma real preocupação com a situação das trabalhadoras domésticas por parte do movimento, eu não vejo as pessoas discutirem o motivo pelo qual adquirem casas maiores que a sua capacidade de arrumar, eu não vejo as pessoas traçando um mundo em que enfim o trabalho doméstico já não seja necessário.

Manifestação no Congresso Nacional pela ratificação da Convenção 189 da OIT e aprovação da PEC das trabalhadoras domésticas. Brasília, 2012. Foto de José Cruz/Agência Brasil.
Como sabemos o trabalho doméstico teve início no Brasil com a exploração da mão-de-obra indígena e negra e, mesmo após a abolição da escravatura continuou a ser desempenhado, em sua maioria, por pessoas negras e pobres, que tiveram pouco acesso a educação.
Por esse motivo, quando da elaboração do projeto da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), as trabalhadoras domésticas foram menosprezadas, sendo a elas garantidos menos direitos que aos demais trabalhadores.
Dessa forma, a aprovação do projeto de lei que igualou as trabalhadoras domésticas aos demais trabalhadores, foi um tapa na cara da sociedade brasileira, que estava acostumada a ser servida, sem, em contrapartida, pagar salários dignos, horas extras, fundo de garantia e décimo terceiro salário.
Além disso, as políticas públicas de cotas e bolsas para os estudantes negros e pobres, que incomodaram tanto a classe média alta brasileira, tem quebrado a roda da pobreza a que permaneciam presas gerações de mulheres, que somente agora se veem representadas, ainda que em pequena escala, nas universidades.
Isso já se reflete nas estatísticas do trabalho doméstico, pois cada vez menos, mulheres de 18 a 24 anos, tem procurado no trabalho doméstico a sua fonte de renda. No entanto, as estatísticas nos mostram que o número de mulheres negras no trabalho doméstico aumentou, o que nos evidencia a vulnerabilidade dessa população.
Contudo, apesar das mudanças que a aprovação da PEC das Domésticas proporcionou, certas coisas permanecem, como a discriminação a que são expostas essas trabalhadoras, os elevadores de serviço, os baixos salários, o assédio moral, as poucas garantias e etc.
Assim, cabe ao movimento feminista se colocar na luta com as trabalhadoras domésticas e fomentar a discussão da realização do trabalho doméstico, não apenas do ponto de vista do trabalho que não é realizado pelo homem, mas do trabalho que é realizado por assalariados.
Para mim e para tantas outras mulheres, filhas dessas trabalhadoras, foi possível superar a herança do trabalho doméstico. Felizmente para mim, eu poderei ser só da minha família e nunca quase “da família” de ninguém.

Autora:

Nasci Mariana Raquel, mas a vida me fez Diva. Atualmente, como divar não paga as contas, estou advogata.

Fonte: Blogueiras Feministas

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