Na produção socioantropológica
sobre a transnacionalização do mercado sexual, a associação das mulheres, de
certas nações pobres do mundo, com a prostituição é vinculada a três fatores
principais: viagens de turistas e militares a países e regiões pobres nos quais
compram sexo; a migração de mulheres para trabalharem em night clubs e bordéis
em todo o mundo e à Internet.
Por Adriana Piscitelli
No que se refere a este último,
os sites destinados a turistas sexuais heterossexuais são considerados espaços
fundamentais em termos da produção e disseminação de estereótipos sexualizados
e racializados de mulheres dos países pobres.
Compartilhando a percepção da
relevância desses espaços virtuais, neste texto considero, em uma abordagem
antropológica, as imagens de mulheres da América do Sul que, neles difundidas,
se integram na alteração dos circuitos mundiais de turismo sexual. A análise
que apresento está baseada em uma pesquisa realizada no site World Sex
Archives, escolhido levando em conta dois aspectos, o fato de ter sido o espaço
virtual mais citado por turistas à procura de sexo entrevistados em uma
pesquisa anterior realizada em Fortaleza, capital do estado do Ceará, no
Nordeste do Brasil e a enorme riqueza do material nele difundido quando
comparado com páginas da web análogas.
Os espaços virtuais destinados ao
sexo, considerados principais veículos de informações que favorecem a
exploração sexual são ainda refúgio favorável para todo tipo de “desviantes”.
Esse comportamento vem sendo objeto dos mais diversos tipos de pesquisa, inclusive
investigações realizadas em abordagens sócioantropológicas. Essas últimas
tendem a centrarem-se nos efeitos dos seus usos sobre a sexualidade. Essas
análises afirmam que o discurso e os atos sexuais têm sido redefinidos pela
institucionalização das conversas e dos atos sexuais virtuais, pois, de acordo
com elas, a internet conduz a uma ressignificação das noções “escrever” e “ler”
e tem a capacidade de criar novas definições de todo evento sexual, desde o
flert e o intercurso sexual às orgias. Ao mesmo tempo, esses estudos consideram
que tais espaços representam a possibilidade extrema de contatos sexuais
“desincorporados” e frequentemente chegam à conclusão de que o uso desses
sites, ao operar como um substituto da sexualidade, conduz ao isolamento.
MEIO PÓS-MODERNO
Nesse marco de discussões, a
ideia sobre os sites voltados para viajantes à procura de sexo é que, longe de
mostrarem um uso das novas instituições sexuais criadas pela tecnologia,
reiteram formas masculinas “tradicionais” de imaginar, “experienciar” e
representar a sexualidade. Nos termos de Bishop e Robinson, para os usuários
dessas páginas da web, esse meio pós-moderno seria pouco mais do que um meio de
globalizar, por meios eletrônicos, espaços reacionários de discurso sexual,
como as paredes dos banheiros masculinos ou as festas de despedida de
solteiros. Finalmente, segundo esses autores, tais sites re etiriam o
isolamento e a alienação que caracterizam a aproximação de seus usuários à
indústria do sexo e ao sexo em si mesmo.
75 MIL “PROFISSIONAIS” BRASILEIRAS
De acordo com pesquisa divulgada
em 2008 pela Organização Internacional de Migrações (IOM), existem cerca de 75
mil prostitutas brasileiras trabalhando na Europa. O estudo revela que Espanha,
Holanda, Suíça, Alemanha, Itália e Áustria são os principais destinos e que o
total de mulheres que deixam o Brasil é bem superior ao de homens. Na Itália,
dos 19 mil brasileiros vivendo legalmente no País em 2000, 14 mil eram
mulheres. Dados do governo espanhol apontam existência de 1,8 mil prostitutas
brasileiras no país e 32 rotas de tráfico de mulheres. Fonte: Jornal O Estado
de SP.
DÉCADAS DE 1950 E 1960
A literatura internacional sobre
essa problemática permite perceber que a apreciação dos destinos escolhidos
pelos viajantes à procura de sexo altera-se ao longo do tempo. Locais que há
décadas são alvo desses turistas vêm perdendo valor. Considera-se que nas
décadas de 1950 e 1960 as mulheres do sudeste da Ásia e da Ásia oriental
(regiões altamente visadas para o consumo de sexo a partir dessas décadas),
representaram o ideal de mercadoria erótica, desejadas pela promiscuidade e
passividade a elas atribuídas. No entanto, na virada do século, essas regiões
teriam perdido “valor” no mercado transnacional de sexo. De acordo com a autora
australiana Beverly Mullings, o turismo à procura de sexo, do mesmo modo que
outros tipos de turismo, está marcado pela busca de experiências singulares
que, concedendo um plus de valorização aos turistas, outorgue a esses viajantes
uma certa distinção social, diferenciando-os dos turistas “massificados”. Nesse
sentido, alguns centros asiáticos, como Tailândia ou Filipinas, excessivamente
popularizados, teriam chegado a um “ponto de saturação”. Na medida em que
números crescentes de viajantes concorrem para consumir serviços sexuais nesses
países, as paisagens sexuais tornar-se-iam menos autênticas, menos reais e,
portanto, menos desejáveis.
DÉCADAS DE 1980, 1990 E 2000
Nas décadas de 1980, 1990 e 2000,
os percursos dos turistas à procura de sexo se voltam para outros cenários,
habitados por “novos” seres apetecíveis para o consumo do sexo, ainda mais
exóticos, ainda mais autênticos e, portanto, ainda mais eróticos. Nesse
movimento, novas regiões-alvo, na América do Sul, tornam-se almejados destinos.
E a inserção do nordeste do Brasil nesses circuitos e, alguns anos depois, de
Buenos Aires e outras cidades da Argentina, oferecem bons exemplos das
alterações desses circuitos.
Tomando como referência o
material analisado no site, meu principal argumento é que, embora haja uma
íntima relação entre turismo sexual e desigualdade, a pobreza, nem sequer
quando é extrema, garante o “sucesso” de um novo centro de turismo sexual. No
marco de certas condições econômicas, aspectos culturais que se expressam na
imbricação entre traços étnico/regionais e estilos de sexualidade operam à
maneira de atração para o surgimento de novos alvos. A alocação desses traços é
construída em um marco no qual a recriação de códigos da sexualidade é
orientada por uma “educação” coletiva, através da transmissão de códigos de
conduta e saberes que, atravessados por gênero, traçam fronteiras etno-sexuais.
Trata-se de limites entre grupos, caracterizados pela intersecção e “interação”
entre sexualidade e etnicidade. Essas fronteiras, que mostram a emergência de
novos processos deracialização, são fundamentais na delimitação de novos
espaços turísticos para o consumo de sexo.
O CIBERESPAÇO
As pesquisas no ciberespaço vêm
obtendo crescente legitimidade no âmbito da antropologia. No entanto, as
discussões presentes nessa disciplina mostram as inquietações suscitadas,
sobretudo, pela ideia de uma “etnografia” em espaços virtuais. Esse debate
trata de problemas éticos e de diversas ordens de questões metodológicas.
Discute-se a dificuldade em obter
dados sobre os parâmetros da população envolvida, as limitações colocadas pelas
entrevistas on-line, as interpretações equivocadas as quais podem conduzir o
fato de trabalhar exclusivamente em um meio textual. No debate entram também
considerações relativas à própria ideia de trabalho de campo e à
conceitualização de etnografia, sobretudo no que se refere ao objetivo de
desvendar um contexto, em toda sua complexidade, através de uma descrição
densa. Concordando com Escobar e com Guimarães Jr. no que se refere a afirmar
que o espaço virtual é uma das esferas constituintes das sociedades complexas,
considero que se a ideia de uma etnografia desses lugares virtuais está aberta
à discussão, é inegável que uma leitura antropológica desses espaços faz todo o
sentido. Sobretudo quando se considera que cabe à disciplina o papel de esboçar
os mapas de significado vinculados às diferentes configurações sociais (sem
perder de vista os processos de interação nelas existente) e levando em conta
que o ciberespaço possibilita a formação de novas redes, com referenciais
específicos.
Considerando essas discussões,
esclareço que neste trabalho penso o âmbito do site à maneira de micro contexto
no marco do qual são acionadas as conceitualizações de viajantes à procura de
sexo sobre as diversas regiões do mundo. Todavia, este contexto não pode ser
separado do processo amplo que torna possível a criação deste e de outros sites
voltados ao oferecimento de informações a turistas sexuais: o crescente
movimento de atravessar as fronteiras para oferecer ou consumir serviços
sexuais. A mídia eletrônica é constitutiva deste processo, assim como de outros
vinculados à “nova ordem global”. Este fato torna a divisão virtual/real
inteiramente artificial. Contudo, apreender o significado das conceitualizações
acionadas no site exige articular este micro contexto com o processo do qual
ele é uma materialização, um procedimento que requer situar este material em
relação aos diversos aspectos desse processo.
CONSUMIDOR HETEROGÊNEO
As análises centradas nos
turistas à procura de sexo mostram a heterogeneidade presente nesse universo de
consumidores. Nessa literatura criaram-se diversas categorias para tratar das
diferenças entre eles. As denominações concedidas aos diferentes “tipos” de
viajantes a procura de sexo variam. No entanto, há uma relativa convergência em
assinalar que para alguns o turismo a procura de sexo alarga o leque de opções
disponíveis em termos de relacionamentos estáveis e perpassados por
sentimentos, enquanto para outros, esse tipo de turismo possibilita inúmeras
experiências sexuais com custos relativamente baixos em termos internacionais.
Levando em conta as dimensões traçadas por Luiz Fernando Dias Duarte na
configuração da sexualidade moderna, esses viajantes parecem corporificar uma
expressão aguda do hedonismo, procurando um prazer inteiramente desvinculado de
investimentos afetivos.
Precisamente os viajantes que
correspondem a essa última categoria são os principais usuários do site
analisado. Friso este ponto, impossível de apreender através de um estudo
exclusivamente centrado nessas páginas web, sublinhando a importância de não
generalizar as observações sobre esses usuários a todos os turistas à procura
de sexo. Os usuários do site constituem um tipo particular, extremo, entre
esses viajantes. Contudo, eles são relevantes no alargamento e na modificação
dos circuitos de turismo sexual internacional (e, neste sentido, é importante
considerar o singular efeito amplificador da web).
A recorrência de mensagens dos
mesmos usuários sugere uma relação quase obsessiva com a temática dessas
viagens. Eles são ávidos consumidores de informação que possibilite ampliar o
leque de experiências sexuais tingidas por marcas étnicas. Alguns fazem
esforços “científicos” com o objetivo de acumular informação. Sem dúvida, eles
não constituem uma comunidade no sentido tradicionalmente acordado a esse termo
no âmbito da antropologia, isto é, conformações de agentes que compartilham uma
origem, uma localidade com limites geográficos estabelecidos, vinculados por
relações que envolvem circuitos de reciprocidade. No entanto, apesar de sua
heterogeneidade e de sua localização dispersa, esses viajantes compartilham
características distintivas em função das quais estabelecem certo tipo de
trocas.
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site considerado apresenta na
página inicial uma ampla imagem com os rostos superpostos de umas quinze
mulheres das mais diversas características, anunciando assim a diversidade
étnica e racial presente no material nele veiculado. Clicando os rostos aparece
o nome dos países cobertos pela página web. O site é apresentado como um espaço
destinado à discussão de acompanhantes do mundo todo, mas se esclarece sua
diferença em relação a outros espaços virtuais voltados para o sexo, seja
daqueles destinados à pornografia ou dos que promovem sexo com menores de idade
(suas regras proíbem veicular material referente a mulheres com idade inferior
a 18 anos). A singularidade do site consiste em fornecer informações sobre
prostituição e turismo sexual, particularmente útil para viajantes. O preview,
além de apresentá-lo como o banco de dados interativo sobre “viagens adultas”
mais amplo da internet, oferece informações que aludem às preferências dos
turistas sexuais. Sexo barato é um dos aspectos aos quais se refere; outro é a
disponibilidade de mulheres que não são necessariamente prostitutas
profissionais.
FRONTEIRAS ETNO-SEXUAIS
Quais são as características das
linhas que demarcam os lugares apreciados para esse tipo de consumo de sexo?
Como se constrói a fronteira entre espaços que atraem esse tipo de viajantes e
aqueles que, imersos em condições políticas e econômicas análogas, não o fazem?
O conjunto de e-mails aponta para
a relevância de relações custo/benefício no consumo do sexo na construção
dessas linhas. Nessas relações, a pobreza de regiões e países, somada ao fato
de oferecem “novos” territórios a serem desbravados (mas não excessivamente
inseguros) e as práticas sexuais possíveis neles adquirem importância. Todavia,
nessas relações há outros critérios da máxima relevância, referidos à atração
erótica vinculada a estilos de corporalidade associados a certos lugares.
O intercâmbio de mensagens sugere
convergências em termos de rejeitar a gordura feminina, assim como a procura de
mulheres que não superem a casa dos 20 anos. Muito ocasionalmente algum
viajante manifesta seu interesse por mulheres mais velhas, tidas como mais
experientes e com corpos mais volumosos. No marco dessas convergências,
escolhem-se lugares na base de distinções expressadas em classificações, em uma
hierarquia construída em torno dos aspectos acima mencionados e da “qualidade”
das mulheres, item do qual participam o aspecto, a juventude e o fato de ter
vaginas apertadas, motivo pelo qual mulheres que não foram mães são
particularmente valorizadas, e os estilos de sexualidade.
O conjunto dessas qualidades está
vinculado a características associadas a regiões e nacionalidades,
singularizado em uma perspectiva comparativa. Nelas, os estilos corporais estão
longe de serem avaliados de maneira uniforme. Alguns frequentadores deixam
clara sua preferência pela brancura, corporificada em mulheres dos países do
Norte, de seios grandes. No entanto, elas são percebidas como inacessíveis, por
não estarem inseridas no mercado sexual. As trocas de mensagens desses usuários
mostram como, nesses casos, as mulheres do “Terceiro Mundo” operam à maneira de
possibilidade de satisfação sexual de segunda classe (27/07/2002, linha de
conversação Trip to Lima/ Peru, consultado em 10/06/2003): “Eu adoraria visitar
esses países do norte da Europa mas o custo de vida é tão alto se não mais alto
do que aqui nos EUA. É por isso que em geral fico pelo 3º mundo”).
Esses visitantes tendem a
desvalorizar os tipos corporais associados à África e a certos países de
América do Sul, associados a um grau extremo de pobreza que, segundo eles, se
expressa na corporalidade, na pele, com acne, e em diferentes tipos de marcas
ou no formato de seios e nádegas.
Estimulando a procura por uma
“autenticidade” turística corporificada em mulheres de diversas regiões do
mundo, o site analisado, longe de operar como substituto da sexualidade, viabiliza
a materialização do contato sexual entre viajantes à procura de sexo e mulheres
nativas. Funcionando como espaço de “socialização” coletiva, orienta, em escala
global, a recriação de códigos de sexualidade e masculinidade associados à
supremacia branca e uma ideia do Ocidental.
Esta análise sugere que as
alterações na geografia dos circuitos mundiais de turismo sexual estão
vinculadas a uma série de fatores, nos quais o empobrecimento dos países do Sul
é um aspecto da maior relevância. No entanto, a pobreza, nem sequer quando é
extrema, tal como no caso do Paraguai, no Cone Sul, garante o “sucesso” de um
novo centro de turismo sexual.
ADRIANA PISCITELLI é pesquisadora
da Unicamp, coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu e professora
participante no Doutorado em Ciências Sociais da mesma universidade,
Campinas-SP.
Fonte: (Geografia.UOL) Geledes
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