“Olhem para eles, são pedaços de
nós, irmãos e filhos do Pai, e não têm para onde ir. Ajudem aqueles que estão
perto de vocês, mas não se esqueçam daqueles que estão longe. Contemplem essas
crianças mortas. Olhem a vida com a esperança que lhes dava estar vendo
continuamente o rosto do meu Pai. Eles contam alguma coisa nos escritórios dos
donos deste mundo, nas assembleias dos políticos, nas previsões de Wall Street?
‘Estou à porta e bato’, repetirei mil vezes. Quem recebe ou abriga a um destes
refugiados é a mim que recebe.”
“Passaram-se 21 séculos desde que
você veio, e é como se não tivesse vindo. Todos acreditam ter a verdade”,
escreve o teólogo jesuíta espanhol Pedro Miguel Lamet, em artigo publicado por
Religión Digital, 29-03-2016. A tradução é de André Langer. Eis o artigo.
O vento forte levantava a areia
da praia de Lesbos. A uma milha de distância, diversos botes infláveis lutavam
contra um mar embravecido, onde famílias de refugiados sírios se debatiam entre
a vida e a morte. Um punhado de pescadores gregos lançou um cabo de sua barcaça
a um dos botes a ponto de desinflar-se e ser engolido por uma gigantesca onda.
Gritavam:
- Salvem-nos, senão vamos
perecer!
O dono, de barba preta e olhos
profundos, vestido com um chaleco cor butano e um gorro afundado até as
sobrancelhas, exclamou:
– Vamos, remem mais forte!
A duras penas conseguiram
arrastar a frágil embarcação até a praia. A imagem que encontraram não podia
ser mais desoladora: jovens voluntários da organização Médicos do Mundo
praticavam a respiração artificial em um náufrago, enquanto outros cobriam com
mantas os cadáveres de várias crianças que não conseguiram sobreviver ao
desembarque.
Exaustos, depois de uma esgotante
jornada, os 12 pescadores acenderam uma fogueira junto a uma casa em ruínas. O
dono disse:
– “Quebrado o timão, sem água e
sem alimentos, vejo estas pessoas como navegantes sem rumo, nem norte nem
porto. O que posso dizer sobre esta geração? Ai daqueles que os jogaram nesta
situação! Ai de você, Europa, que lhes fecha as portas e lhes nega a vida! Eu
enviei, há muito tempo, a estas praias os meus primeiros apóstolos para semear
a Boa Nova de amor e de bem-aventurança. Vocês me construíram igrejas, sim, mas
também fundaram nações para se enriquecerem, e depois de lutar entre vocês,
acabaram entregues ao deus que chamam de ‘Estado de Bem-Estar’.”
“Vocês converteram o continente
em um castelo invencível, um recinto fechado com muros e barreiras, um mercado
dependente dos movimentos da bolsa e dos ‘prêmios’ de risco, em função de seu
próprio egoísmo. Vocês criaram uma moeda única para engrossar as suas arcas,
pois armazenam em bancos o dinheiro de todos, ou promover multinacionais que
exploram os mais desfavoráveis dos países pobres. Mas, de que servem as suas
polpudas contas bancárias quando se apresentar o implacável ladrão na noite?”
Um marinheiro chamado André
perguntou:
– Mas, eles não têm o Papa e os
bispos para recordar-lhes o que você ensinou na sua primeira vinda?
– “Ai, André, muitos se
esqueceram do mar, da pesca e das noites de vigília. E ao atual sucessor de
Pedro, que, fiel a mim, clama por estes desvalidos, não lhe fazem caso. É uma
voz que grita no deserto do consumismo. Ou então chamam-no de ‘populista’ e ‘comunista’.
Pediu que os refugiados fossem acolhidos, mas a Europa faz ouvidos moucos,
limita-se a colocar remendos em tamanha tragédia.”
“O Papa criticou sem rodeios um
sistema que ‘descentrou a pessoa’, colocando no centro o ‘deus dinheiro’ e
defendeu para que a Igreja não se fechasse em si mesma. ‘Se uma igreja, uma
paróquia, uma diocese, um instituto vive fechado em si mesmo, adoece’. Ele é
contra transformar os mosteiros vazios em hotéis para obter recursos, quando
estas pessoas não têm onde reclinar a cabeça ou morrem como cães nestas
praias.”
Os discípulos cochichavam entre
si sobre algumas críticas que faziam ao Papa: “Vive na residência de Santa
Marta, em vez de morar no palácio vaticano”, “usa um carro simples”,
“aproxima-se dos doentes e visita as prisões, fala com os mendigos da rua e diz
que não é ninguém para julgar os homossexuais”. “Não é um teólogo brilhante, e,
para o cúmulo, entende-se tudo o que diz”.
– “Vocês não me reconhecem nestas
palavras de Francisco?”, perguntou o Mestre. “Cada vez com maior frequência, as
vítimas da violência e da pobreza, abandonando suas terras de origem, sofrem o
ultraje dos traficantes de pessoas humanas na viagem rumo ao sonho de um futuro
melhor... Mais que em tempos passados, hoje o Evangelho da misericórdia
interpela as consciências, impede que se habituem ao sofrimento do outro e
indica caminhos de resposta fundados nas virtudes teologais da fé, da esperança
e da caridade, desdobrando-se nas obras de misericórdia espirituais e
corporais.”
Uma voluntária da ACNUR, uma
daquelas que o seguiam habitualmente, perguntou:
– Mas, diga-nos, Jesus, por que
devemos receber os imigrantes e refugiados? Também entre nós há muito
desemprego e crianças que passam fome, falta de moradia digna e de direitos
fundamentais?
Jesus estendeu sua mão em direção
às tendas montadas pelos que cooperam para abrigar os refugiados, que
continuavam desembarcando às centenas.
– “Olhem para eles, são pedaços
de nós, irmãos e filhos do Pai, e não têm para onde ir. Ajudem aqueles que
estão perto de vocês, mas não se esqueçam daqueles que estão longe. Contemplem
essas crianças mortas. Olhem a vida com a esperança que lhes dava estar vendo
continuamente o rosto do meu Pai. Eles contam alguma coisa nos escritórios dos
donos deste mundo, nas assembleias dos políticos, nas previsões de Wall Street?
‘Estou à porta e bato’, repetirei mil vezes. Quem recebe ou abriga a um destes
refugiados é a mim que recebe.”
– No entanto, alguns bispos dizem
que devemos ter muito cuidado, porque isto traz riscos. Depois dos recentes
atentados de Paris, há quem diga que se escondem entre eles terroristas,
membros da jihad.
– “A erva daninha cresce em todas
as partes. Mas, deve o dono da colheita cortar a cizânia junto com o trigo? Se
vocês estiverem atrás de todos os riscos ao fazerem as suas boas obras, não
sairão de casa, ficarão todo o dia vendo televisão e comendo pipoca. Se aquele
que recebe uma esmola sua o saqueia, não se arrependa de tê-lo ajudado, pois
seu Pai que vê no escondido conhece sua intenção e recompensará seus esforços.”
Aproximou-se então um bombeiro
voluntário de Sevilha.
– Pois nos prenderam por ajudar
essa gente.
– “Por terem estendido uma mão a
estes irmãos que deixaram suas casas e a colocam em risco para fugir de uma
guerra injusta para sua liberdade, os nomes de vocês estão escritos no livro da
vida.”
Como cada vez mais pessoas se
juntavam ao coro dos que queriam escutar Jesus, os discípulos tiraram algumas
latas de conserva e um queijo com pão que traziam na geladeira de seu barco de
pesca. Nisto se levantou um homem, de cerca de 28 anos, com calça jeans, óculos
redondo e cabelos despenteados.
– Mestre, você viu alguma vez os
programas da televisão? Você tem telefone celular? Você está no Twitter ou no
Facebook? O que pensa do boom tecnológico?
Jesus sorriu. Depois tirou um
smartphone do bolso de trás da calça e disse:
– “Na minha primeira vinda eu
tinha que subir a uma montanha ou a um telhado, às vezes, afastar-me em um
barco para que as multidões pudessem me ouvir. Não tinha outro veículo senão
estas duas pernas, que me levaram pelos caminhos da Galileia e da Judeia, onde
preguei a Boa Nova. Falava-lhes em parábolas de semeadores, vinhas, figueiras,
casamento, pães e remendos. De que lhes falarei agora? Do chip e do disco
rígido, do whatsapp e do skype?”
“Direi que esta geração vive
colada ao telefone celular, gasta megas e gigas para se comunicar, mas anda
sozinha e triste como abutres no deserto. Abarrota os grandes supermercados
durante os fins de semana, mas são incapazes de satisfazer seu coração
amontoando compras. Nos países do Norte desperdiçam e jogam fora a comida que
sobra, ao passo que crianças do Sul perecem de fome. Empanturrados de
sexualidade e pornografia barata, esqueceram-se do amor que se esconde em um
lírio e de como meu Pai alimenta e veste um pardal.”
– Então – interrompeu o jovem
universitário –, não são esses meios formidáveis púlpitos para proclamar a
Palavra?
– “Esta geração embotou os
ouvidos e cegou seus olhos de tanto ouvir e olhar. Se desde que se levanta liga
a televisão e não a desliga até ir dormir; se fica o dia inteiro com os fones
de ouvido e não para de teclar no celular, é porque não sabe estar sozinho e é
incapaz de escutar o silêncio. Você, quando quiser atingir o melhor eu, fecha a
porta e seu Pai que vê o que está escondido lhe falará e o transformará por
dentro até encontrar o caminho que leva à vida eterna.”
“O homem planta e rega, constrói
belos edifícios, cria máquinas admiráveis, computadores, carros, aviões, naves
espaciais, vacinas, robôs e até espaços virtuais, mas não pode acrescentar um
palmo à sua estatura, nem prolongar indefinidamente sua vida. E nada do que faz
pode ser feito sem o concurso do Pai. Mas, ai daqueles que idolatram todas
estas criaturas convertendo-as em absoluto! Transformam-se nos artefatos que
adoram, que em pouco tempo saem de moda e vão direto para cemitérios de lixo
que contaminam o planeta.”
Jesus tirou seu gorro de
marinheiro e o vento da noite agitava seu cabelo. Com tom solene acrescentou:
– “No entanto, todo aquele que
encarna a Palavra brilhará com luz própria e iluminará os seus irmãos. Desse
modo, não escondam a luz na sombra de seus apartamentos ou escritórios, mas
coloquem-na alto sobre as cadeias de comunicação deste mundo, para que todos
possam vê-la e escutá-la e louvem o Pai de vocês que está nos céus. Não
encontrarão melhor crivo que os próprios destinatários da verdade de vocês,
que, ao final, saberão distinguir a moeda verdadeira da falsa, aquele que vive
verdadeiramente a Palavra, e aquele que não passa de um sino que retine ou um
alto-falante barulhento. Porque a luz brilha também nas trevas, repletas de
negatividade, de seus informativos, redes sociais, filmes ou telejornais.”
Felipe, um dos seus discípulos,
que era pastor protestante, tomou a palavra. Todos aguçaram sua atenção, à
espera do que diria:
– Senhor: você não sabe o quanto
nos alegra o fato de que tenha retornado ao mundo. Mas, já vê, estamos
confusos: estas vítimas que estamos resgatando do mar são refugiados sírios de
religião muçulmana. Aqui há voluntários católicos, ortodoxos, protestantes,
judeus e inclusive agnósticos ou gente que duvida de tudo. Passaram-se 21
séculos desde que você veio e é como se não tivesse vindo. Todos acreditam ter
a verdade. E olha, há inclusive crentes que se convertem em homens-bomba em
nome de Deus. Outros que insistem que a salvação se encontra apenas na Igreja
católica. A fé em você, depois de todos esses séculos, em vez de nos unir, não
nos colocou em inimizades por conta de atitudes dogmáticas que excluem e de
redis religiosos em conflito?
O Mestre refletiu em silêncio e
indicou aos seus pescadores para que repartissem os restos de pão e as poucas
latas de cavala e berbigões que ainda restavam na geladeira.
– “Passem também a bota de vinho”
– sugeriu.
Depois, aproximou-se da multidão
e alimentou o fogo com pedaços de madeira de restos de embarcações naufragadas.
Seu rosto cobrou tons avermelhados à luz da fogueira, envolto pela coluna de
fumaça que se perdia entre nuvens desfiadas com fulgores de lua.
– “Filhos meus, resguardem-se de
alguns líderes que converteram a religião em um monte de normas, um catálogo de
proibições, um inexpugnável redil de fanáticos. Eles deformaram o rosto do meu
Pai, transformando-o no rosto de um ogro, em um mestre de escola que surra os
seus alunos, ou em um ditador sem entranhas de qualquer república bananeira que
exclui e condena. Carregam fardos insuportáveis sobre as costas de vocês e
enchem a boca com palavras bonitas.”
“Eles se fazem chamar de pais,
mas só há um Pai, que está nos céus e naqueles que cumprem sua vontade.
Destroem as obras de arte ou torturam o conhecimento científico, a investigação
e outras criações humanas castrando o pedaço de infinito que Deus colocou no
coração do homem. Não. Eu vim para colocar o amor acima da lei e arremetia
contra os fariseus porque eles se fecharam na letra para apagar o espírito e
conservar seu barraco, que também era seu negócio. Como é possível que muitos
continuem a transformar a fé em creches para adultos, fortins de defesa ou se
protejam com ritos, roupagens e códigos?”
O pastor protestante levantou-se
e insistiu.
– Você não respondeu à minha
pergunta. Vivemos em um mundo onde todos expõem suas ideias livremente,
enquanto reina a confusão. Diga-nos de uma vez por todas: qual é a religião
verdadeira? Defina-se: com quem você está? Com o Vaticano dos católicos, com os
ortodoxos, a comunidade anglicana, os protestantes, a Nova Era?
Jesus se levantou e foi em
direção ao mar.
– “Diga-me: de quem é o mar? Você
viu os documentos sobre a riqueza zoológica submarina? Após tantos séculos de
história, o homem não conhece nem a décima parte de sua fauna e flora. Olhem o
firmamento: os astrônomos, com seu potentes telescópios, ainda são incapazes de
adivinhar os milhares de astros e estrelas que povoam os espaços siderais, e
russos e americanos fizeram apenas curtas viagens interplanetárias. E vocês
querem encerrar Deus em um matraz para analisá-lo?”
“Somente rompendo os seus
ridículos copos de compreensão poderão enchê-los do verdadeiro Deus. A verdade
não é algo estático, como um quadro ou um diapositivo. Nem cabe em um só livro.
A verdade é como um manancial que está escrito no coração do homem e que vai
crescendo até converter-se em rio e em mar. O que vocês querem? Encapsular a realidade
em uma garrafa de Coca-cola e vendê-la por um dólar ou um euro? Eu sou o
caminho, a verdade e a vida.”
“Mas eu nunca disse que me seguir
equivaleria a cumprir um catálogo de prescrições, como contentar-se em ir à
missa, comungar aos domingos ou colocar a cruzinha na declaração de renda.
Falei de uma água que salta para a vida eterna, mas não de tanques exclusivos
para alguns poucos privilegiados que luzem as cores de uma camiseta. Sabem com
o que se parecem? A equipes de futebol enfrentadas, a míopes partidos políticos
para quem não interessa o bem da população, mas a vitória de suas siglas e o
auto-enriquecimento.”
Então chamou um menino sírio
tremia de frio sob uma manta. Sentou-se ao seu lado e esfregou-lhe os ombros
para aquecê-lo.
– “Qual é o seu nome?” –
perguntou-lhe.
– Sibel – respondeu.
– “Em verdade lhes digo, minha
verdade chama-se Sibel, e qualquer um destes pequeninos que mendigam nas ruas
de Cabul ou do Rio de Janeiro. A verdade é receber Sibel como a mim mesmo e a
quantos sofrem marginalização e fome, são maltratados pela injustiça de um
mundo dominado pelo pensamento único de cerca de 20 bilionários, suas
multinacionais e alguns políticos. Os meninos-soldados, as mulheres espancadas
e maltratadas pelo machismo, as criaturas destroçadas pela pederastia e as
adolescentes exploradas pelo turismo sexual. Dei a minha vida por eles e a
darei novamente diante de um pelotão de fuzilamento ou metralhado por seus
sicários em qualquer rodovia, se for preciso.”
Uma mulher muçulmana com véu levantou-se
trêmula:
– E aqueles que nos fizeram fugir
das nossas aldeias? E aqueles que nos matam em nome de Alá? Você disse para
amar os nossos inimigos? Maomé nos convocou para a jihad.
– “Em verdade vos digo que
aqueles que com ferro ou tiros matam, com ferro e rajadas de metralhadoras
serão mortos. Estão no erro e pagarão com a mesma moeda. Mas, asseguro a vocês
que mesmo os terroristas e assassinos são filhos do Pai. Também dei meu sangue
por eles. Perdoei-os na árvore da cruz. Também vocês devem perdoá-los para que
se convertam e vivam. Não há outra jihad que lutar para crescer interiormente e
não ser como eles, que fazer um mundo mais justo no qual caibam os empobrecidos
filhos do Islã. Amem-se uns aos outros como eu amei vocês. Porque aquele que
ama os seus amigos, que mérito tem? Não é tão difícil aproximar-se da minha
verdade. Se não aprenderem isto, sobram todas as disquisições teológicas e as
cátedras dos sábios.”
Um idoso de barba branca
apresentou-se como padre, capelão de um grupo de voluntários, e dirigiu-se a
Jesus emocionado:
– Senhor, meu nome é Manolo. Eu
dediquei a você toda a minha vida, a proclamar o seu Evangelho. Durante muitos
anos fui pároco em um povoado e depois em uma grande cidade. Esforcei-me por
sua causa. Mas meu grande inimigo foi a rotina. Preparava com muito estudo e
dedicação as minhas homilias; levava com grande cuidado a Cáritas Paroquial,
organizava a catequese, os grupos de crisma e os movimentos de ação católica.
Tentava orientar com misericórdia no confessionário e despertar aqueles que
acodem aos batizados, casamentos e funerais.
– Mas, sabe, Senhor? – prosseguiu
Manolo –, consegui pastorear apenas algumas ovelhas do redil, católicos de toda
a vida. Sentia que minha igreja não passava de algo mais que um escritório de
sacramentos e um refúgio de beatas. Não conseguia muito mais. A maioria dos
habitantes do meu bairro não ia à Igreja. Estavam preocupados apenas em
conservar o seu trabalho, em ir às compras e fazer excursões nos finais de
semana. O que aconteceu conosco? Por que o seu Evangelho não interessa? Por que
tudo parece cinzento, e já quase ninguém acredita que a felicidade se encontra
em você?
Jesus se levantou e,
aproximando-se, colocou suas mãos sobre os ombros do padre idoso.
– “Obrigado, Manolo. Talvez você
não soubesse, talvez às noites tinha dúvidas de fé ou se sentia inútil e
terrivelmente sozinho. Mas eu estava ao seu lado. Mais, quando partia o pão e a
palavra, era eu mesmo que o fazia por seu intermédio. Eu, melhor do que
ninguém, sei que sua semente caiu muitas vezes em boa terra e deu seu fruto,
embora não soubesse disso.”
“É verdade também que vocês vivem
agora em um mundo muito secularizado, que valoriza apenas a matéria, o que é
palpável, e não é capaz de apreciar o que tantas vezes repeti para vocês: que o
reino é como um grão de mostarda ou de trigo, ou como uma pitada de fermento. O
marketing e as estatísticas entraram na minha Igreja como um demônio revoltoso
que quantifica tudo em números, edifícios, fundações e resultados. Eu amo o
pequeno, a moeda da viúva, uma só ovelha perdida, um frasco de perfume
derramado com amor, uma oração escondida na penumbra do templo. Chamei aos
demais de servos, a você, Manolo, chamei de amigo.”
Manolo enxugou com o reverso da
mão uma lágrima que lhe corria por sua face. Quando se repôs, replicou:
– No entanto, Mestre, devo
confessar-lhe algo. De mil maneiras preguei suas bem-aventuranças, mas depois
de tantos anos de vida pastoral eu mesmo não sei o que é a felicidade. Mais,
vejo que todo o mundo a busca de mil maneiras e não a encontra.
– “Quantas vezes devo repetir que
falta fé a vocês? Pedi e recebereis, batei e as portas se abrirão. O mundo de
hoje se afunda porque, como meu apóstolo Pedro, não se atreve a caminhar sobre
as águas. Pensa que me seguir é apertar os punhos e cumprir certas práticas
para tranquilizar sua consciência. Disse naquela vez e repito agora: aquele que
não se negar a si mesmo, tomar sua cruz e me seguir não é digno de mim. Esta
frase horroriza uma sociedade centrada no bem-estar do homem e na
“’autorrealização’.”
“E poucos a entenderam bem.
Alguns dos seus pensadores e filósofos escreveram que eu preguei a
autodestruição do homem. Nada mais distante de mim. Confundem seu eu mesquinho,
fixado em quatro coisas desta vida, como o êxito, o dinheiro, o poder, com seu
verdadeiro eu mais profundo. Centrar-se em conquistas mundanas nos tira a paz,
que é a felicidade possível do homem. Quase sempre vocês falam da minha cruz e
muito pouco da minha ressurreição. Ressuscitar é dar-se conta de que ‘o Reino
de Deus está dentro de vocês’, de que já têm tudo o que conforta, como disse o
meu apóstolo Paulo.”
“Querido Manolo, não busque
resultados, não se deixe contagiar pelos balanços empresariais e seu medo do
déficit. Seja você mesmo, aquele que saiu bem feito das mãos de Deus, entra no
seu interior e ressuscitará comigo, embora enquanto viaja e se encontra em vaso
de barro, continuará sofrendo alguns medos, sombras e incertezas, pois não
posso poupá-los da cruz. Mas regozijem-se, porque preparei um lugar para vocês,
e aquele que crê em mim terá a vida eterna.”
Sem se dar conta, todos os
presentes notaram que a noite já tinha passado e um rosáceo resplendor
despontava no horizonte anunciando o amanhecer. Das barracas saíram os
primeiros responsáveis de algumas ONGs para organizar as comitivas de
refugiados, que iniciavam sua caminhada rumo aos Bálcãs, Alemanha, Suécia e
outros países europeus com seus exíguos apetrechos. Fazia frio, mas aqueles que
se alimentaram da Palavra, sentiam uma brasa em seus corações e uma renascida
esperança brilhava como uma leve centelha em suas pupilas.
Alguns pescadores e outros
voluntários voltaram ao mar para resgatar novos refugiados. Jesus se pôs a caminho
rodeado de crianças e seus pais, que acabavam de ouvir na rádio tristes
notícias, como as que em sua marcha se encontrariam com novas barreiras de
arame farpado, soldados, trens abarrotados e fronteiras fechadas. Ao longe
despontavam silhuetas de múltiplos frágeis botes em sua incessante luta para
desembarcar e salvar suas vidas. E era de dia.
Fonte: Ihu
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