Alexya Salvador, diaconisa da Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo: "nos espaços religiosos, onde os valores patriarcais são a base, jamais haverá lugar para uma prática que estimule a igualdade e a justiça”. FOTO: Yahoo
No Brasil do século XXI, as
mulheres continuam largando em desvantagem. Com salários menores que os dos
homens, ainda que exercendo as mesmas funções; muitas vezes, cumprindo jornadas
de trabalho duplas ou triplas; sub-representadas em espaços de decisão ou tendo
sua visibilidade condicionada ao ponto de vista sexista, como acontece na
publicidade; mais vulneráveis à violência e à discriminação; elas ainda têm
pela frente o desafio lidar com uma cultura cheia de conservadorismos, dentre
os quais o de base religiosa – cujos defensores e simpatizantes têm atacado boa
parte das conquistas e reivindicações relacionadas à igualdade de gênero.
Por vezes, justificada de forma
dogmática, a desigualdade traduz-se de muitas maneiras, inclusive em números.
De acordo com pesquisa feita por uma grande agência de empregos, as mulheres
ganham em média 30% menos que os homens. E quanto menor é a exigência de
qualificação para o cargo, maior a diferença salarial.
Na representação política, embora
tenha crescido em comparação com a última legislatura, a bancada feminina – com
51 deputadas – representa apenas 10% da Câmara. Número que contrasta com o
tamanho do eleitorado feminino brasileiro: mais da metade (52%) do total.
Enquanto isso, países como a Costa Rica e Argentina têm em torno de 40% de
parlamentares mulheres. Por aqui, o percentual de mulheres na representação
política oficial subiu apenas 7% em três décadas.
Em sua face mais radical, a da
violência, a desigualdade de gênero vitima, fatalmente, uma mulher a cada hora
e meia, com um terço dos crimes ocorrendo dentro de casa. O Brasil é o número
sete de 84 países do ranking de homicídios de mulheres no mundo. Reconhecendo a
gravidade do problema, também pressionado por acordos internacionais e pelo
movimento de mulheres, o governo brasileiro instituiu, recentemente, uma lei que
tipifica o feminicídio, endurecendo as penas para quem incorre nesse delito,
entre outras medidas.
Sob ataque
Apesar do avanço, conquistas e
reivindicações seguem em jogo. Bandeiras como os direitos sexuais e
reprodutivos vêm sendo questionadas por parte de um grupo expressivo de
parlamentares conservadores, no qual se destacam as vozes evangélicas.
Atualmente, são 78 evangélicos
entre deputados e senadores. Parte deles vem se notabilizando por justificarem
posições políticas com argumentos baseados na religião – especialmente, a
respeito de questões que se referem ao aborto e a homoafetividade. Na bancada
feminina são 10 evangélicas, cinco delas – Clarissa Garotinho (Partido
Republicano – PR – Rio de Janeiro), Christiane Yared (Partido Trabalhista Nacional
– PTN – Paraná), Eliziane Gama (Partido Popular Socialista – PPS – Maranhão),
Tia Eron (Partido Republicano Brasileiro – PRB – Bahia e Rosângela Gomes (PRB –
Rio de Janeiro) – eleitas com mais de 100 mil votos.
O deputado Eduardo Cunha tem se
destacado por projetos como o que tipifica o aborto como crime hediondo ou o
que cria o dia do "Orgulho Heterossexual”. FOTO: Agência Brasil
Para Magali Cunha, professora da
Universidade Metodista de São Paulo e especialista na Área de Mídia, Religião e
Política, a atuação dessas mulheres, em geral, têm sido invisibilizada, embora
haja exceções.
"Clarissa Garotinho – que
carrega o apelido de seu pai – está entre aquelas que tiveram votações das mais
expressivas ao lado de Christiane Yared. Esta última tem aparecido mais por se
articular com Eduardo Cunha, ocupando, atualmente, a diretoria da Frente
Parlamentar Evangélica. A invisibilidade da mulher nos espaços de poder pela
mídia é uma reprodução do que acontece nas igrejas”, analisa.
Em relação à bancada feminina,
para os defensores de direitos humanos, o maior receio é que as novas presenças
evangélicas tornem seu perfil mais conservador, seguindo a tendência do grupo
de parlamentares que se identifica como evangélico – liderado por Eduardo Cunha
[Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB – Rio de Janeiro] – e tem
travado uma verdadeira luta contra os direitos sexuais e reprodutivos e LGBT
[Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais].
Antes de figurar entre os
suspeitos do mais recente escândalo de corrupção do país, Cunha ficou conhecido
por projetos de lei como o 7382/2010, que penaliza a discriminação contra
heterossexuais; o 1672/2011, que institui o Dia do Orgulho Heterossexual, a ser
comemorado no terceiro domingo de dezembro; e a 7443/2006, que dispões sobre a
inclusão do tipo penal de aborto como modalidade de crime hediondo.
A pressão da bancada evangélica,
inclusive, fez com que a lei do feminicídio deixasse de se estender às mulheres
trans. O projeto de lei foi alterado para que o crime somente se enquadre na
nova tipificação se o sexo da vítima estiver especificado na carteira de
identidade. Isto é, mesmo em se tratando de homicídios baseados na questão de
gênero, o feminicídio só se aplica às mulheres cisgênero.
Igrejas e igualdade de gênero?
Membro de igrejas pentecostais
durante boa parte de sua vida – assim como o deputado Cunha -, Valéria Cristina
Vilhena destaca que esse tipo de tradição religiosa nem sempre foi identificada
com o conservadorismo que, hoje, ameaça direitos de grupos como as mulheres.
"A religião cristã
evangélica pentecostal – tradição da qual venho -, bem no seu início, foi
reconhecida por pesquisadores como ecumênica e inclusiva para mulheres e
negros. Tal histórico, infelizmente, não se estabeleceu. Ao contrário, a
tradição cristã que prevaleceu foi a da exclusão. Frida Vingren, por exemplo,
esposa da Gunnar Vingren – um dos fundadores do pentecostalismo brasileiro –
foi invisibilizada na história oficial das Assembleias de Deus. Ela foi esquecida,
embora tenha trabalhado muito ao lado do seu companheiro pelo crescimento das
Assembleias de Deus no Brasil”, lembra.
Valéria observa que os
evangélicos, em geral, são bastante abertos ao mercado, às novas tecnologias, à
mídia, mas em relação aos direitos das mulheres ainda reproduzem a misoginia.
Destaca também que os espaços sagrados são, comumente, utilizados para os mais
variados fins, como venda de bíblias, livros, discos, realização de shows
gospel e bazares. "E não usaríamos esses mesmos espaços para a promoção da
igualdade? Para o diálogo, para o combate às violências? Por que não? A não
utilização é pecado de omissão diante da escancarada desigualdade entre homens
e mulheres na sociedade. O que já é uma violência”, questiona.
Existem igrejas que já fazem
isso, como a da Comunidade Metropolitana de São Paulo. Segundo sua diaconisa,
Alexya Salvador, nos cultos, encontros e momentos de formação, a pregação
inclui a luta pela igualdade, seja ela de gênero, orientação sexual, direitos
civis, religião, etc. Alexya, que é uma mulher trans, acredita que nos espaços
religiosos onde os valores patriarcais são a base, jamais haverá lugar para uma
prática que estimule a igualdade e a justiça.
"A religião, seja ela qual
for, deve ser, antes de mais nada, lugar de igualdade e justiça. Igualdade
pressupõe justiça e por isso não há como separar suas realidades. Só haverá um
caminho de justiça: se a religião se propuser a vivê-la em suas comunidades.
Daí sim, o caminho que se fará é de conscientizar a sociedade sobre os valores
do Reino de Deus, que, por sua vez, nos comunica a igualdade, a justiça e a
fraternidade”, lembra.
Fonte: Adital
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