Há um ano, morria a auxiliar de
serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira, aos 38 anos, arrastada por uma
viatura da PM por 350 metros. Todos os policiais envolvidos no caso permanecem
em liberdade.
Era uma manhã de domingo quando
ela decidiu sair de sua casa, no morro da Cegonha, no Rio de Janeiro, para ir à
padaria comprar pão. No meio do caminho, foi atingida por dois tiros. A Polícia
Militar alega que os projéteis foram disparados durante um tiroteio.
O que aconteceu depois é
impossível de ser esquecido: Cláudia sendo arrastada pela viatura da PM. O
rastro de sangue não deixa mentir. Foram 350 metros de sofrimento, até que o
carro para e os policiais a colocam de volta no porta-malas.
Na última semana, o Ministério
Público do Rio de Janeiro denunciou por fraude processual os seis PMs
envolvidos na morte de Cláudia. O órgão concluiu que eles modificaram a cena do
crime quando removeram o corpo a pretexto de socorrê-lo, mesmo sabendo que já
não lhe restava vida. Dois deles foram denunciados, ainda, por homicídio doloso
qualificado. Três dos agentes continuam trabalhando em outros batalhões; os
outros estão judicialmente proibidos de exercer suas funções.
Um ano depois, entretanto, nenhum
deles foi preso.
No último domingo (15), milhares
saíram às ruas para protestar, acima de tudo, contra a corrupção e a
impunidade. Nas faixas e cartazes carregados pelos manifestantes, muitas
menções à Operação Lava Jato e ao esquema de pagamento de propina da Petrobras.
Nenhuma palavra, contudo, em relação à demora na punição dos policiais que
assassinaram Cláudia. Indo além: silêncio absoluto quanto à condenação dos
inúmeros PMs que diariamente aterrorizam e executam, nas periferias do Brasil,
a população negra e pobre.
Cláudia não faz parte da
preocupação dos “indignados” de domingo. Nem ela, nem nenhuma das questões que
compõem seu universo de mulher marginalizada por sua raça, condição social e
gênero. Tampouco sua história, brutalmente encerrada pelo horrendo episódio do
dia 16 de março de 2014. Prova disso é o culto à militarização, observado nos
protestos de ontem. Pessoas posando sorridentes para fotos ao lado de PMs
constituíam uma cena normal. O que dizer, então, dos pedidos de intervenção
militar?
O caso de Cláudia não é isolado,
é um símbolo. O que aconteceu com ela ocorre todos os dias com mais cinco
brasileiros, segundo o último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O estudo indica que, em 2013, nossas polícias mataram pelo menos seis pessoas
por dia. Do total de óbitos registrados, 81,8% foram cometidos por policiais em
serviço.
Nada disso é novo. Há anos,
movimentos sociais, pesquisadores, artistas e organizações de direitos humanos
vêm chamando a atenção para esse quadro. Mas a mídia tradicional – a mesma que
ajudou a organizar e insuflar os atos de ontem – despreza solenemente essa
realidade. As grandes massas se enfurecem, de forma legítima, com a impunidade
de políticos e servidores públicos corruptos, mas não movem uma palha sequer
para contestar a demora da Justiça em condenar policiais assassinos –
sobretudo, quando as vítimas são negras e pobres. É a revolta seletiva.
Cláudia, Amarildo, Douglas, os
doze jovens mortos na chacina do Cabula, em Salvador, ou as onze pessoas assassinadas
em Belém não lotam avenidas. É banal a ideia de que essas vidas valem menos.
Fonte: Revista Fórum
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